História esquecida: as "crianças-lobo" do pós-guerra
3 de novembro de 2017Elas costumavam estar descalças e tinham piolhos. Devia ser abril de 1946, mas Erika Smetonus, depois de tantas décadas, não sabe precisar a época. Sua mãe não sobreviveu à guerra, e seu pai desapareceu em algum lugar.
Quando a grande fuga da população da Prússia Oriental começou, e os alemães, às dezenas de milhares, passaram a se espalhar em direção a oeste, ela acabou ficando para trás, sozinha. Tinha 11 anos – e estava desesperada, porque, com o avanço do Exército Vermelho, havia também perdido seu irmão mais novo.
Em vez de ficar ali, Erika decidiu se juntar a um menino um pouco mais velho, que sempre fugia dela quando tinha algo para comer, de modo a não ter que dividir o pouco que tinha. Juntos, conseguiram chegar à Lituânia. Ela encontrou um novo lar com um casal lituano, que mandou o menino embora porque não queria criar duas crianças. Erika ficou – por muitas décadas.
Sobre a quantidade das crianças chamadas "wolfskinder” (alemão para "crianças-lobo" ou crianças selvagens) tem-se somente uma estimativa. Pode ser que eram 25 mil, que, depois de 1945, ficaram perambulando entre florestas e pântanos da Prússia Oriental e Lituânia.
A adoção de "crianças fascistas” era extremamente proibida entre os russos. O melhor, dizia-se na época, era ir rumo à Lituânia, onde era possível encontrar comida. Quando tinham sorte, os "vokietukai” ("alemãezinhos”), ao passarem por vilarejos em direção ao Báltico, encontravam em frente às portas das casas tigelas de sopas deixadas por moradores que sentiam pena deles. Quando tinham azar, o próximo vizinho já deixava os cachorros preparados para a recepção.
Crianças pequenas encontravam com maior facilidade abrigo em casa de famílias desconhecidas do que crianças mais velhas. Quem não tinha um teto sobre a cabeça, era obrigado a sobreviver na floresta. Mas, mesmo aqueles que haviam encontrado um novo lar, nunca estavam seguros se poderiam permanecer ali por muito tempo. Marianne Beutler, que tinha na época 10 anos, foi recebida por uma família de camponeses lituanos como babá durante um inverno. Passado meio ano, a família mandou-a embora.
O preço da sobrevivência
Em seis meses ela aprendeu lituano – uma necessidade vital. Falar alemão era proibido. Para as famílias também era um perigo acolher as "crianças-lobo”. Inclusive ter um nome alemão implicava um alto risco. Por isso, Marianne teve seu nome alterado para Nijole.
E o pouco que esses órfãos levaram consigo na fuga – resquícios e memórias de seu passado, como fotos, cartas, endereços de familiares – era tomado deles e completamente destruído. A completa perda de suas identidades era o preço da sobrevivência.
Mesmo sendo difícil a vida na Lituância, as "vokietukai” tiveram mais sorte que as crianças mais fracas que não conseguiram chegar ao Báltico. Quem não conseguia chegar lá, ficava em alojamentos da administração militar soviética. Segundo a historiadora Ruth Leiserowitz, cerca de 4.700 crianças alemãs estiveram somente no outono de 1947 nesses acampamentos.
A metade dessas crianças foi mandada naquele mesmo ano a zonas de ocupação soviética que viriam a pertencer posteriormente à República Democrática Alemã (RDA). Transportadas em vagões de carga sem palha, que lhes poderia servir de colchão, a maioria das crianças entre dois e 16 anos chegou morta ao leste da Alemanha depois de quatro dias e quatro noites de viagem. As que sobreviveram foram enviadas a abrigos ou foram adotadas por famílias comunistas.
A falha da política
A política por muito tempo não se ocupou das "wolfskinder”. Como grupo de vítimas da Segunda Guerra Mundial, elas foram tratadas de forma negligente e burocrática. Em 2016, o Parlamento alemão decidiu pela primeira vez indenizar alemães que trabalharam forçosamente durante a Segunda Guerra. Uma vez mais, as "wolfskinder” não foram levadas em consideração pela medida parlamentar.
Quando a Lituânia obteve em 1990 sua independência, as "crianças-lobo” receberam a cidadania lituana. E exatamente por isso lhes foi negado o passaporte alemão por muito tempo. A postura do governo federal alemão era baseada na afirmação de que, como elas haviam abandonado a Prússia Oriental, tinham, consequentemente, renunciado à cidadania alemã. Se, mesmo assim, alguém quisesse reaver sua cidadania alemã, tinha diante de si um longo e complicado caminho a percorrer.
Inclusive a aposentadoria alemã foi negada aos órfãos de guerra. Afinal de contas, a Lituânia estava pagando a aposentadoria a seus "wolfskinder”, ainda que fosse uma quantia pequena. Os últimos sobreviventes que queiram solicitar indenização têm até o final do ano para fazê-lo.
Volta para casa?
Erika Smetonus não voltou a ver o garoto com quem foi à Lituânia em 1946. Mas, depois de 40 anos, conseguiu localizar o irmão, antes tido como perdido.
E, depois disso, também teve o reencontro com seu pai. Porém, nem toda busca por pessoas desaparecidas durante esse período tenebroso da infância tem um final feliz. O desejo de voltar a ter seu lar alemão não se concretizou para todas as crianças.
Rudi Herzmann, por exemplo, alimentou ao longo de vários anos o sonho com sua pátria alemã da infância. Porém, esse sonho acabou se tornando um pesadelo.
Quando chegou ao país cujo idioma ele falava como língua materna, logo percebeu que aquele não era seu lugar. Por muito tempo ele tentou se adaptar aos costumes alemães, mas, depois de 13 anos, decidiu voltar ao lugar para o qual a fuga o havia levado: a Lituânia.