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"Governos do PT valorizaram lugar da mulher na sociedade"

23 de agosto de 2022

Autora de "Quatro décadas com Lula", militante histórica da esquerda Clara Ant comenta legado e desafios atuais do petista, de quem foi assessora. Se eleito, Lula terá como tarefa desfazer retrocessos sob Bolsonaro, diz.

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Clara Levin Ant
"Infelizmente estamos num patamar de retorno, de destruição, de demolição, que nos fez regredir violentamente"Foto: Editora Autêntica/Divulgação

Em 2016, em meio ao cenário político conturbado e ao fechamento do cerco lava-jatista contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Clara Levin Ant decidiu se aposentar. Depois de ser assessora de Lula durante praticamente os oito anos de seus dois mandatos à frente do Palácio do Planalto, ela trabalhava no Instituto Lula, em São Paulo.

Ant pretendia retirar-se para escrever um livro. E o processo acabou sendo concluído com a reclusão forçada pela pandemia de covid-19, conforme ela conta. No mesmo mês em que a campanha eleitoral começou no Brasil, com Lula tentando retornar ao comando do país, ela lançou, pela editora Autêntica, a obra Quatro Décadas com Lula - O Poder de Andar Junto, suas memórias como militante, aliada e assessora do sindicalista que se tornou presidente do Brasil.

Nascida na Bolívia, ela vive no Brasil desde 1958. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, foi professora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, fundadora e dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e umas das intelectuais que estiveram envolvidas na criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Entre 1987 e 1991 foi deputada estadual de São Paulo. 

No novo livro, Ant, de 74 anos, retoma importantes episódios ligados a Lula, dos 580 dias em que ele esteve preso em Curitiba à maneira como o combate à fome foi prioridade em seu primeiro governo.

Em entrevista à DW Brasil, ela considera que "resgatar a condição mínima de sobrevivência" dos brasileiros "que hoje não têm o que comer" deve estar no cerne de um eventual novo governo petista. "Com certeza o Lula terá de retomar [essas preocupações]", diz.

Ao avaliar o cenário eleitoral atual, Ant afirma que enfrentar o atual presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro é uma disputa que, ao contrário das em que o PSDB era adversário, não ocorre "dentro das regras da democracia". "Temos um enfrentamento entre o respeito à vida e a defesa da morte", define.

Para ela, os governos de Lula e de sua sucessora, Dilma Rousseff, deixaram como legado uma valorização das mulheres. "Com toda a abertura que foi dada à presença da mulher, ajudaram a reconhecer o lugar das mulheres, inclusive com medidas institucionais", diz à DW Brasil.

DW Brasil: Em seus 40 anos de militância política, como vê a evolução do papel da mulher nesse meio tão dominado por homens?

Clara Levin Ant: Estamos décadas à frente daqueles dias. E houve evidentemente mudanças muito importantes. A primeira é a mobilização das mulheres, a disposição das mulheres em enfrentar o preconceito e as dificuldades neste ambiente em que eu vivo [da política], onde até hoje a maioria é masculina. Certamente que se fazer ouvir é uma batalha a mais a ser levada adiante para nós mulheres.

Sim, mudou, sim, melhorou, sim, foi e continua sendo bastante duro para que sejamos ouvidas e que nossa presença deixe de ser invisível. Mas eu tenho comigo que com certeza estamos em outro patamar e com certeza estamos em condições de melhorar cada vez mais e com uma velocidade maior do que há 40 anos.

Acredito que os governos do Lula e da Dilma [Rousseff], com toda a abertura que foi dada à presença da mulher, ajudaram a reconhecer o lugar das mulheres, inclusive com medidas institucionais, como o Bolsa Família. que era transferido no nome da mulher, os apartamentos do Minha Casa Minha Vida [cujas escrituras eram feitas no nome da mulher].

A campanha eleitoral já começou e, de acordo com as pesquisas, Lula é o favorito. Quais são os principais desafios dele para vencer as eleições?

Primeiro, evidentemente, é enfrentar essa onda de mentiras, de fake news, de ameaças e de torpeza que se manifesta do lado de lá, do lado do atual ocupante do Palácio do Planalto [o presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição].

Segundo, ele precisa já se preparar para, no momento que for governar, ter um horizonte para ser abraçado: grandes setores da sociedade, como os jovens, que estão com uma expectativa muito grande […] na recuperação e reconstrução da democracia e do país.

Outro desafio já colocado de antemão é fazer com que o Brasil saia de novo do mapa da fome. [É preciso] interceptar, interromper esse sofrimento que a população brasileira está tendo e recuperar o papel e a responsabilidade pública que precisa haver.

É mais difícil enfrentar um candidato extremista como Jair Bolsonaro do que enfrentar os adversários tucanos das eleições anteriormente disputadas por Lula?

Não tem medida para se comparar, porque no enfrentamento entre petistas e tucanos, enfim, pessoas que defendem diferentes projetos de país, mesmo que fossem projetos muito diferentes, estávamos em um ambiente, em uma arena de enfrentamento dentro das regras da democracia, das regras impostas pela Constituição, das regras estabelecidas pela convivência democrática. Não há referência para fazer uma comparação… Não tem como comparar nem os tucanos nem nós, do PT, lulistas e demais democratas com esse bloco que hoje tem uma identidade com as milícias e com ambições fascistas, de desrespeito à vida e perversidade total.

Nada disso [que ocorre hoje] permeava o embate que houve entre tucanos e petistas. É tão diferente porque os vários partidos mais ou menos democráticos mais ou menos são comprometidos com os interesses populares, mas não dá para comparar nenhum desses partidos que se enfrentaram nas eleições anteriores com essa candidatura atual [de Bolsonaro].

Não é uma questão de estar mais no centro ou no extremo, não é disso que se trata. [Os outros adversários tinham] projetos diferentes que respeitavam a Constituição, a vida, os direitos humanos, os direitos dos cidadãos estabelecidos pela Constituição de 1988. Já [o grupo de Bolsonaro] é um agrupamento de pessoas que utilizam a política para se fartar de benesses, de dinheiro e simplesmente ignorar, totalmente, ignorar é a palavra, os interesses da população, as necessidades de sobrevivência da população. Não dá para comparar.

Isso justifica a aliança com Geraldo Alckmin, o tucano histórico que mudou de partido para se tornar candidato a vice na chapa do Lula? PT e PSDB, no fundo, eram parecidos?

São cenários diferentes. Não é que o PT e o PSDB eram parecidos. Mas o PT e o PSDB têm respeito parecido pela população, pelos direitos. Com grandes diferenças, mas dentro da convivência democrática, das regras constitucionais.

Com transbordos aqui e acolá, divergências, coisa mais comum que acontece numa democracia em que convivem partidos diferentes, ideias diferentes, disputando o mesmo espaço, a liderança do país, do estado, da cidade. Não é o que está acontecendo agora. Não tem como. Eu recuso peremptoriamente a ideia de que Lula e Bolsonaro são dois extremos.

Não são dois extremos. Eles não são comparáveis, têm pontos de partida totalmente diferentes, não há nada que seja semelhante. […] Está claro que estamos diante de uma única opção nessa eleição. Ou se opta pela democracia, pela liberdade de expressão, por um país melhor, ou ela vai condenar brasileiros e brasileiras a viver mais quatro anos em um sufoco, em uma asfixia democrática com risco de vida para quase toda a população, se você analisar o que foi a liberação do comércio de armas e o descaso nos cuidados da pandemia, entre outras. Temos um enfrentamento entre o respeito à vida e a defesa da morte. E estamos juntos no respeito à vida.

Quando surgiu a ideia de registrar sua trajetória em livro? 

Depois que a Dilma foi eleita, eu participei da transição do governo e voltei para São Paulo junto com o Lula e acabamos construindo o Instituto Lula. Fiquei no instituto até final de 2016 e daí, dado o cerco que nós sofremos, inclusive asfixia financeira, com as dificuldades que passamos a viver diante do cerco da Lava Jato, que nos apresentava para a sociedade como criminosos.

Depois daquela glória inicial, após o final do governo, quando voltamos para São Paulo e construímos o Instituto Lula, ficamos, três, quatro anos, numa euforia muito grande, uma felicidade muito grande de o Lula ser disputado por organizações do mundo inteiro para relatar a experiência dele, contar como que faz para acabar com a fome, para dar dignidade. Então começaram as acusações, começaram a por em dúvida, o Ministério Público pôs em dúvida a veracidade das palestras do Lula. Essa disseminação da Polícia Federal e do Judiciário contra o Lula fez minguarem as contribuições e as demandas de agenda.

O Lula teve de se ocupar muito tempo com os processos, gastar um tempo conversando com os advogados para ver como enfrentar essa, eu diria essa enxurrada de acusações, todas elas sem pé nem cabeça, mas existentes e colocando para nós uma situação bem distinta no dia a dia do Instituto. [...] Nesse momento a diretoria foi reformulada, passando a ser majoritariamente de trabalho voluntário. Então eu saí da diretoria, eu e outros saímos, para dar essa liberdade para reformular os gastos, as pessoas, o perfil das pessoas do instituto. E foi mais ou menos o período em que decidi escrever o livro.

Em seu livro você relembra como acabou sendo chamada, no início do primeiro governo Lula, para compor um grupo do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (Mesa), criado justamente para combater a fome. Com a fome voltando a assombrar as mesas brasileiras, acredita que essa questão estará no pontapé inicial de um eventual novo governo Lula?

Não há dúvidas que uma das prioridades, talvez a número 1, será a de resgatar a condição mínima de sobrevivência dessa parcela de brasileiros que hoje não têm o que comer porque come muito menos do que precisaria para sobreviver. E outras questões voltadas para a sobrevivência, como a moradia, o emprego, as condições mínimas de cidadania… Com certeza o Lula terá de retomar [essas preocupações].

Infelizmente estamos num patamar de retorno, de destruição, de demolição, que nos fez regredir violentamente nesses aspectos. Lula, Alckmin e todos os seus apoiadores terão a enorme responsabilidade de resgatar as condições mínimas de vida e de sobrevivência, de trabalho e de cultura, de educação do povo brasileiro.