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Fezes e urina humanas: a volta de um recurso precioso

Bilkis Lawal
13 de maio de 2023

Na Antiguidade, dejetos eram base de uma economia circular. Projetos por todo o mundo exploram esse potencial. Para eles, fazer cocô e xixi em água potável desperdiçando esses recursos é um luxo sem sentido nem futuro.

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Homem aplica fertilizante em plantas
Rich Earth Institute de Michigan, EUA, produz fertilizante de urina humanaFoto: Marcin Szczepanski/Rich Earth Institute

Ao longo de um ano, o ser humano médio produz cerca de 500 quilos de urina e 50 quilos de fezes. Multiplicado por 8 bilhões, isso resulta em imensas montanhas de cocô e rios de xixi. A maior parte é, naturalmente, eliminada, porém em vários pontos do mundo surgem projetos visando acabar com esse desperdício de matéria orgânica.

Num deles, pesquisadores do Laboratório Água, Meio Ambiente e Sistemas Urbanos (Leesu, na sigla em francês), nas proximidades de Paris, empregam urina humana para fertilizar plantações de trigo, com resultados positivos.

Os agricultores consideram as safras comparáveis às produzidas com fertilizantes sintéticos, os quais são ou baseados em fosfatos ou envolvem em sua fabricação gás natural, um combustível fóssil poluente. Além de produzir pegadas carbônicas menores, adubos provenientes de dejetos fornecem matéria orgânica que melhora a qualidade do solo.

No entanto, por melhores que os excrementos processados sejam para o meio ambiente, comer alimentos cultivados com cocô ou mesmo xixi humanos é para muitos uma ideia difícil de engolir. Ou será excesso de suscetibilidade?

Carroça puxada por cavalos em campo verde
A partir do século 19, agricultores abandonaram adubos naturais em favor da químicaFoto: Rich Earth Institute

Cocô na agricultura não é nada novo

As civilizações antigas sabiam do valor dos excrementos, fonte de nutrientes como nitrogênio, fósforo e potássio, que contribuem para o crescimento e a saúde das plantas.

Em seu livro The other dark matter (A outra matéria escura), a jornalista científica Lina Zeldovich conta como, no Japão dos séculos 17 a 19, vendia-se shimogoe, ou "terra noturna", que era processada em adubo para melhorar os terrenos rochosos menos férteis.

 

Micróbios: uma solução para solos esgotados?

Na China, o cocô dos ricos custava mais, pois sua dieta mais rica em nutrientes resultava num produto superior. Na Mesoamérica, os chinampa, os jardins flutuantes da era maia, eram abundantemente fertilizados com fezes.

No século 19, porém, a situação começou a mudar, registra Zeldovich: esgotos modernos e fertilizantes sintéticos perturbaram a estrutura cíclica da natureza: "Quando começamos com a lavoura e a vida em cidades, criamos esse problema realmente interessante: cultivamos a comida em certos lugares, aí a transportamos e consumimos em outros."

Assim, ao invés de retornar aos campos locais, os nutrientes vão parar nas estações de tratamento de esgoto ou nos corpos aquáticos próximos. Uma péssima má notícia, se essas substâncias acabam indo alimentar pragas de algas nos lagos e rios, ameaçando peixes e flora aquática.

O problema é grave nos Estados Unidos continentais, por exemplo, onde cerca de 65% de todos os estuários e águas litorâneas de 48 estados estão degradados por nitrogênio e outros nutrientes originários de sistemas sépticos imperfeitos e da fertilização para a agricultura.

Sanitário sueco que separa dejetos sólidos e líquidos
Sanitário sueco separa dejetos sólidos e líquidos para processamento ulteriorFoto: Sanitation 360

Urinando e defecando por uma economia circular

Os experimentos nos subúrbios de Paris não são o único exemplo de um bom uso do que humanos defecam e urinam: iniciativas semelhantes estão em curso desde a América do Norte até a África.

O Rich Earth Institute, uma organização de pesquisa do estado americano de Vermont, mantém um programa comunitário no qual 180 cidadãos doaram sua urina para a lavoura em 2021. Num projeto semelhante de economia circular, a sueca Sanitation 360 também transforma urina em fertilizantes secos.

No Quênia, a startup Sanivation leva a ideia ainda mais adiante, ao produzir combustível para cozinha e indústria a partir de dejetos sólidos, como alternativa ao carvão oriundo do corte de árvores. Com clientes nos setores de manufatura, processamento de laticínios e têxteis, ela já vendeu 2 mil toneladas de briquetes feitos com fezes.

No entanto, falta infraestrutura para gerir grandes volumes de dejetos, aponta Colin McFarlane, professor de saneamento urbano da Universidade Durham, na Inglaterra: "Ainda não chegamos perto de abarcar as possibilidades de ter as excreções humanas como um recurso", e seria necessário incorporar todas as soluções possíveis de reciclagem e gestão, sugere.

Pelotas de fertilizante de urina humana numa vasilha
Pelotas de fertilizante de urina humana produzido na SuéciaFoto: Sanitation 360

Cocô e xixi: um problema de imagem

Outra dificuldade está na aceitação pública: pesquisas confirmam a existência de barreiras tanto culturais quanto psicológicas impedindo uma maior difusão da reciclagem de excrementos.

No Gana, por exemplo, coprofobia, a aversão às fezes, sobretudo humanas, é difundida, e para muitos o cultivo de comida utilizando essa matéria é visto como anti-higiênico. Por outro lado, um estudo sugeriu que a rejeição é bem menor quando se esclarece que o material fecal é tratado e processado antes de se transformar em fertilizante.

Ressalvas de saúde representam outra barreira para o adubo de dejetos humanos, que muitos percebem como insalubre e portador de patógenos. De fato: constatou-se em estudos que fertilizantes indevidamente tratados podem resultar na ingestão de vermes nocivos.

Porém Jojo Casanova-Linder, cofundador da companhia suíça Kompotoi, tranquiliza: em seus toaletes de compostagem, as fezes são expostas a alta temperatura, que mata as bactérias, e levam 12 semanas para virar adubo. A parte líquida, por sua vez, é destilada em concentrados a serem aplicados diluídos em água.

Até agora a Kompotoi vendeu cerca de 300 toaletes, principalmente na Suíça, e o empresário já conta que será necessário algum tempo até o processo se tornar mainstream. Mas talvez não seja o caso de ter pressa: "A questão é por quanto tempo vamos poder nos dar ao luxo de fazer cocô em água potável e não recuperar os recursos", adverte Casanova-Linder.