Feminicídio brutal faz Irã discutir "crimes de honra"
4 de junho de 2020No fim de maio, um lugarejo no norte do Irã foi palco de um assassinato particularmente hediondo: num assim chamado "crime de honra", Reza Ashrafi, de 37 anos, decapitou a própria filha com uma foice, enquanto ela dormia. Casos semelhantes costumam ser silenciados pelas famílias, porém este atraiu ampla atenção, na mídia tradicional e nas redes sociais.
Romina, de 14 anos, tinha fugido de casa com um homem de 29 anos que mais tarde alegou ser apaixonado por ela há cinco anos. A família não dera permissão para um matrimônio – embora isso fosse possível, pois no Irã as jovens já podem se casar aos 13 anos.
Cinco dias depois de a adolescente desaparecer, a polícia encontrou o casal e a devolveu à família. Segundo a imprensa, a mãe escutou o marido dizendo a Romina para se matar, senão ele o faria, mas ela não fez nada para salvar a filha. Após o brutal assassinato, parentes organizaram um serviço fúnebre em nome do "honrado" pai.
"A amarga verdade é que a cultura patriarcal está profundamente arraigada na sociedade iraniana", comenta a autora e ativista dos direitos femininos Asieh Amini, que escapou do Irã após os distúrbios de 2009 e hoje vive na Noruega. "Não importa quão instruídas as mulheres iranianas sejam, ou quanto tenham alcançado através de seu status forte na sociedade civil: no atual sistema político, os homens têm do seu lado não só a tradição, mas também a lei."
Para o mundo exterior, as iranianas parecem ter alcançado muito em termos de igualdade, sobretudo em comparação com outros países da região como a Arábia Saudita, onde só recentemente as mulheres receberam o direito de conduzir automóveis, e só desde 2015 podem votar.
No Irã, as cidadãs têm permissão para dirigir desde 1940, e desde 1963 votam e concorrem a cargos políticos. Elas detêm a metade dos títulos acadêmicos, e tem crescido regularmente nos últimos anos o número de mulheres que pediram divórcio ou obtiveram um acordo mútuo para dar fim a um casamento infeliz.
Sob a tutela masculina
No entanto, iranianas e sauditas têm em comum o fato de não serem consideradas dignas dos mesmos direitos que os homens, devido às leis derivadas da sharia, a legislação tradicional islâmica. Todas as decisões importantes são tomadas por seus pais ou maridos. Mesmo após a morte: como o código criminal islâmico consagra o princípio de retribuição, se uma menina ou mulher é vítima de um crime, seu guardião é quem estipula se o autor é punido, possivelmente com a morte, ou perdoado.
O caso de Romina evidencia o absurdo desse sistema, já que o perpetrador também é quem decide sobre perdão ou punição. Segundo a imprensa nacional, antes do assassinato o pai perguntou a um advogado que pena poderia sofrer. A resposta foi: de três a dez anos de prisão.
Ashrafi não é o único pai a se aproveitar dessa lacuna no sistema de Justiça do Irã. Segundo uma pesquisa da Academia de Polícia Iraniana, cerca de 45% dos homicídios cometidos em províncias especialmente tradicionais do Oeste e do Sul são "crimes de honra".
"Numa sociedade tradicional, a honra é o mais atributo importante de uma mulher", explica a jornalista iraniana Mahrokh Gholamhosseinpour. "Um homem cuja esposa ou filha perdeu a honra é rejeitado, humilhado e ignorado por essa sociedade."
Durante anos ela pesquisou a questão dos feminicídios por "honra" no Irã. E recorda do caso da menina Ala, que vivia numa aldeia da província de Cuzestão, no sul do país. De acordo com sua mãe, ela foi violentada por diversos homens de outra tribo, quando tomava conta de ovelhas. Ao ser levada de volta à aldeia, semimorta, logo se decidiu que deveria ser eliminada.
Em muitos casos, o pai ou avô designa um irmão ou primo da garota "desonrada" para cometer o assassinato. Em seguida, ele próprio assume a responsabilidade ou perdoa o criminoso.
"Na maioria dos 'crimes de honra', não há queixa por parte do guardião. E o assassino é rapidamente libertado após ambas as partes entrarem em acordo", explica Gholamhosseinpour. A fuga ou rapto de Romina provavelmente não teria resultado em sua morte se a família vivesse numa cidade maior, avalia a jornalista, que atualmente vive nos Estados Unidos.
Reforma fora de questão para conservadores
O destino de Romina abalou profundamente a sociedade iraniana, e não só na internet. Praticamente todos os jornais noticiaram a respeito; o presidente Hassan Rouhani ordenou que seu gabinete finalmente proponha as reformas legais necessárias a punir com mais severidade atos cometidos em nome da "honra da família".
No entanto, Rouhani sabe que projetos visando proteger as mulheres da violência familiar serão rejeitados pelo sistema de Justiça conservador. Políticos linha-dura argumentam que tais leis são uma tentativa de imitar valores e metas ocidentais que contradizem os princípios islâmicos.
Kobra Chasali, membro do influente Conselho Social e Cultural Femino (WSCC, na sigla em inglês) leva esse argumento ao extremo. Segundo ela, não seriam os valores e leis islâmicos os culpados pela morte de Romina, mas sim os apoiadores da Agenda para Desenvolvimento Sustentável 2030 da Organização das Nações Unidas, a qual tem, entre outras metas, a de estabelecer a igualdade entre os sexos em todo o mundo,
O WSCC responde diretamente ao líder religioso supremo do país, Ali Khamenei. Há 35 anos o conselho procura impor à sociedade iraniana sua versão de cultura e valores muçulmanos, e combate violentamente as metas de desenvolvimento da ONU, que defendem educação sexual e igualdade entre meninos e meninas.
Para os conservadores, a resposta ao problema dos "crimes de honra" é simples: casar as garotas o mais cedo possível.
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