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Arte

Entre a vigilância e o totalitarismo

J.P. Cuenca
28 de novembro de 2019

Exposição em Berlim tematiza a vida entre muros e faz pensar sobre as novas configurações da segregação e da hipervigilância no século 21.

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"All Along the Watchtower”, instalação da tunisiana radicada em Berlim Nadia Kaabi-Linke
"All Along the Watchtower”, instalação da tunisiana radicada em Berlim Nadia Kaabi-LinkeFoto: Timo Kaabi-Linke, courtesy: the artist

O prédio neorrenascentista do museu Martin Gropius Bau fica bem ao lado de um longo e conservado pedaço do Muro de Berlim e do antigo quartel-general da Gestapo, hoje um centro de documentação chamado de Topografia do Terror.

Num raio de menos de um quilômetro dali também estão o Checkpoint Charlie, o Memorial do Holocausto e o estacionamento anódino onde ficava o bunker onde Hitler se matou. Essa localização coloca tudo o que está dentro do prédio em conjunto com esse espaço "historicamente carregado”, como o próprio museu admite em texto de apresentação impresso em suas paredes.

Artistas como Anish Kapoor e Ai Weiwei já usaram tal contexto em imersivas exposições individuais que ocuparam o museu inteiro. E se qualquer objeto esquecido sobre uma mesa já soa como um comentário nesse terreno minado de significados, o que podemos dizer de obras site-specific, criadas em diálogo com tal espaço?

Difícil não pesar a mão, como mostram os resultados irregulares desses e de outros artistas que ali tentaram. É quase como se o Martin Gropius fosse uma moldura muito pesada para qualquer obra.

É nesse fio que se equilibra Durch Mauern Gehen (caminhando através de muros, em tradução livre), exposição comemorativa dos 30 anos da queda do Muro de Berlim que exibirá, até janeiro de 2020, um panorama de 28 artistas de 21 países em vídeo, performance, pintura, escultura e instalação.

O percurso fragmentado atualiza a utopia da queda do Muro – se a euforia de novembro de 1989 fez mais fácil imaginar o 'fim da história' e um mundo sem fronteiras, hoje a segregação e a crise do sistema capitalista se faz presente sob qualquer ponto de vista.

Em seus melhores momentos, o conjunto difuso de obras sublinha as novas configurações do que entendemos como confinamento, como nas pinturas a óleo da libanesa Targreed Darghouth (câmeras de segurança), do chinês Yuan Yuan (abstrações que evocam claustrofobia por trás de cercas e becos), e no grande painel do holandês Michael Kvium, retratando uma praia mediterrânea que assiste indiferente a um desesperado desembarque de refugiados.

A primeira grande instalação, que dá boas vindas aos visitantes já no átrio espetacular do museu, é da artista brasileira Regina Silveira. Em Intro 2 (Irruption Series) ela imprime passos no topo de uma escada e nas janelas onde ficava a antiga entrada do museu na época da RDA (antiga Alemanha Oriental) – o Muro foi construído tão perto da sua entrada principal que o prédio teve que abrir outra porta.

As marcas dos pés escalando paredes remetem aos que usaram esta divisiva entrada e também aos soldados que marcharam por aqui. Mas o resultado aqui é mais lúdico que impactante.

É curioso que seja outra artista a usar o mesmo paradoxo de sombras impressas na parede, dispositivo que Silveira usa há décadas, a responsável pela sala mais forte da exibição. Em All Along the Watchtower, a tunisiana radicada em Berlim Nadia Kaabi-Linke usou um jato de ar para pintar no chão e nas paredes a realista sombra de uma torre de segurança que não existe.

O colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e Berlim
O colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

Do outro lado da sala vazia, apenas a gigantesca janela de onde se vê o fragmento do Muro e as ruínas da SS e da Gestapo. A metáfora é óbvia, especialmente pela invisibilidade da construção. Essa torre de vigilância é tão ubíqua quanto naturalizada: a carregamos nos bolsos, em nossos celulares.

Ainda sob as sombras da torre oculta de Kaabi-Linke, saio direto do museu para um sótão em Kreuzberg, onde os brasileiros da Coalizão Direitos na Rede organizam um debate no contexto do Fórum de Governança da Internet da ONU, cuja edição deste ano é em Berlim. A noite é fria, mas há sopa de tomate e todos são muito simpáticos – as notícias é que não.

O tema das exposições, não por acaso, é How much of a threat to the Internet is Bolsonaro? (em que medida Bolsonaro é uma ameaça à internet?) e são denunciadas a exploração de dados pessoais, as ameaças ao direito de expressão e à privacidade, os monopólios digitais e as tentativas de regulação sob perspectivas criminalizantes e antidemocráticas (a íntegra da carta aberta lançada em Berlim). 

A internet democrática celebrada nos anos 90 hoje parece outra utopia gasta, como a despertada pelos dos muros derrubados pós-89.

Entre mecanismos de vigilância em massa e uma máquina de desinformação sem precedentes, os totalitarismos fervem pelo mundo. Num momento em que o muro mais intransponível de todos tampouco é físico: é o que nos separa de imaginar um mundo – um sistema – diferente do que vivemos.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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