Empresas e governos debatem privilégios para vacinados
28 de dezembro de 2020Apenas 24 horas após a União Europeia (UE) começar a distribuir a vacina contra a covid-19 em todo o continente, lideranças da política e da medicina iniciavam um debate sobre as implicações morais e sociais relacionadas aos prováveis privilégios concedidos às pessoas vacinadas.
Frank Ulrich Montgomery, presidente da Associação Médica Mundial, e Thomas Mertens, virologista e diretor da Comissão Permanente de Vacinação (Stiko) da Alemanha, sugeriram que um certo tipo de "passaporte de vacinação” poderia permitir que as pessoas imunizadas possam ter acesso a voos, restaurantes, concertos e cinemas.
Nesta segunda-feira (28/12), Montgomery afirmou à emissora pública Deutschlandfunk que, apesar de que ainda é cedo para discutir a questão antes que a vacina esteja disponível para todos, ele não descartaria, em princípio a ideia. Afinal, muitos países apenas permitem a entrada em seus territórios de pessoas que já tenham sido vacinadas contra a febre amarela. ressaltou.
Muitos alemães já possuem o chamado "passaporte de imunização”, um documento onde são registradas todas as vacinas aplicadas em uma pessoa.
Apenas recentemente, o país aprovou uma lei que exige que todas as crianças sejam vacinadas contra o sarampo antes de que possam ir ao jardim de infância ou à escola. Como o comparecimento na escola é obrigatório no país, isso significa que a imunização também se tornou automaticamente obrigatória.
Privilégios podem causar "divisão na sociedade”
Mertens foi ainda mais longe ao afirmar ao jornal Die Zeit que é capaz de imaginar um mundo onde as empresas possam exigir comprovação de vacinação contra a covid-19 antes de aceitar clientes. ”Estes seriam acordos privados feitos pelo proprietário de um restaurante, pelas empresas aéreas ou organizadores de concertos”, explicou. Ele acrescentou, porém, que a legalidade dessa questão deve ser avaliada por juristas.
O governo alemão já recusou repetidas vezes a obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus e, talvez cientes das futuras queixas dos barulhentos céticos contrários à vacina, as principais autoridades do país foram rápidas em rejeitar a concessão de privilégios aos imunizados.
"Politicamente, tenho uma opinião bastante clara sobre isso”, afirmou neste domingo o ministro alemão do Interior, Horst Seehofer ao jornal Bild am Sonntag. "Dada a importância da vacinação para todos nós, não deve haver nenhum tratamento especial para os vacinados. A distinção entre vacinados e não vacinados seria o mesmo que uma vacinação obrigatória.”
Seehofer admitiu tacitamente que o governo pouco pode fazer para deter as empresas que decidam estabelecer suas próprias políticas. "Tudo o que posso fazer é alertar contra isso”, disse. "O tratamento especial para os vacinados dividirá a sociedade.”
O ministro alemão da Saúde, Jens Spahn, também rejeitou a possibilidade de conceder direitos especiais àqueles que se vacinarem. "Ninguém deve reivindicar direitos especiais até que todos tenham a chance de se vacinar", argumentou.
"Muitos aguardam solidariamente para que alguns possam ser vacinados primeiro. E aqueles que ainda não foram vacinados esperam que os vacinados sejam pacientes, em um gesto de solidariedade", disse Spahn nesta segunda-feira a jornais do grupo de mídia Funke.
Segundo o ministro, é justamente esse respeito mútuo que mantém o país unido. "Estamos lutando contra a pandemia juntos – e só vamos superá-la juntos."
Debate internacional
Outros países também iniciam debates semelhantes. O Reino Unido, que começou na metade de dezembro a vacinar os idosos e os profissionais de saúde na linha de frente do combate à doença, também descartou distribuir passaportes de imunização aos que já receberam as doses.
Entretanto, ainda há certa confusão no país em relação ao tema. Em novembro, a ministra da Saúde do país, Nadhim Zahawi, gerou controvérsia ao sugerir que bares e locais de práticas de esporte poderiam negar a entrada de pessoas que recusaram a imunização, através de uma tecnologia de rastreamento.
Apesar das negativas do governo britânico, vários jornais do país relataram planos internos para a criação de um passaporte de imunização ou de um selo nos passaportes regulares, que permitiriam que as pessoas vacinadas possam viajar para determinados países
Entretanto, em outra parte do mundo, esse debate já deixou de ser novidade. A China possui desde fevereiro um código de cores no sistema público de saúde, implementado em mais de 200 cidades, que determina aonde os cidadãos podem ou não ir.
Tecnologias impulsionam privilégios
O software desse sistema foi integrado pelas autoridades locais ao aplicativo de mensagens WeChat e à plataforma de pagamentos online AliPay, com número estimado de um bilhão de usuários.
Depois de as pessoas preencherem um rápido questionário sobre suas temperaturas corporais e seus históricos de saúde, o aplicativo determina a probabilidade dos indivíduos de espalharem o vírus e os coloca em uma cor referente às áreas onde podem ou não ir.
Os que estão nas cores vermelho ou amarelo são os que tiveram algum tipo de contato com o coronavírus, o que significa que estão proibidos de viajar.
Durante a cúpula dos países do G20, em novembro, o presidente da China, Xi Jinping, sugeriu a criação de um esquema semelhante em escala mundial. Ao que tudo indica, é bem provável que algum tipo de sistema de certificação internacional de vacinação venha a ser criado, ao menos no setor de viagens aéreas.
O Common Trust Network, uma rede criada pela ONG Commons Project Foundation em parceria com o Fórum Econômico Mundial, desenvolve em conjunto com várias empresas aéreas um aplicativo que deve funcionar de modo semelhante.
A IBM já criou o chamado Passe Digital de Saúde que, segundo a gigante da tecnologia, deverá "permitir que as organizações verifiquem credenciais de saúde de empregados, clientes e visitantes que entrarem em suas instalações com base em critérios definidos pela própria organização”.
Direitos especiais esbarram em questões morais
Da forma como previram os políticos alemães, o setor dos negócios poderá tirar essa decisão de suas mãos e alavancar por contra própria a criação de um círculo privilegiado de clientes covid-free. Nos Estados Unidos, várias empresas começaram a desenvolver sistemas online onde os usuários podem carregar suas informações referentes à vacinação, mesmo que regulamentações governamentais sejam contrárias a essa prática.
Mas, para Karl Lauterbach, epidemiologista e membro do Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha, os privilégios concedidos às pessoas vacinadas contrariam razões políticas e morais. "Não se deve descartar a possibilidade de que as pessoas vacinadas poderão infectar os outros”, afirmou.
Para ele, a justificativa econômica, que seria permitir que as empresas possam reabrir mais cedo, é apenas uma miragem. "O que realmente á perigoso para a economia é a constante abertura e fechamento da vida pública”, afirmou. "A questão de que um pequeno grupo de pessoas vacinadas poderá ou não fazer mais do que os outros é irrelevante à luz disso.”