Doação de soprano russa a Donetsk gera polêmica
12 de dezembro de 2014A famosa soprano russa Anna Netrebko segura, com alguma hesitação, a ponta da bandeira vermelha com a cruz azul de Santo André, que representa a região separatista "Nova Rússia", no leste da Ucrânia.
O cenário é a coletiva de imprensa num hotel de luxo em São Petersburgo, na segunda semana de dezembro. O líder separatista Oleg Tsarev lhe estendera a flâmula diante das câmeras. Mais tarde, ele divulgaria na rede social Twitter que a estrela da ópera "hasteou a bandeira da Nova Rússia".
Durante a coletiva, Netrebko, de 43 anos, entregou a Tsarev um cheque no valor de 1 milhão de rublos (cerca de 15 mil euros), enfatizando que o dinheiro seria destinado ao teatro de ópera da cidade de Donetsk. O fato de a quantia ter sido entregue ao líder dos separatistas – perseguido por Kiev como terrorista – e não às personalidades culturais locais, transformou a iniciativa numa questão política.
O agente da soprano, Michael van Almsick, tentou aplacar a situação, publicando uma declaração da artista: "Eu quis ajudar e apoiar meus amigos artistas com uma doação, pois acredito no poder da arte em tempos de conflito e crise. A doação foi entregue a uma autoridade, para assegurar que ela chegue em segurança a seu destino final, o Teatro de Donetsk. Mas quero esclarecer que essa doação não é um ato político."
Entretanto, o renomado violinista letão Gidon Kremer afirmou à DW que considera a ação "um ato totalmente consciente e político". "Os artistas deveriam promover paz e harmonia. É pena que uma das mais belas vozes do mundo emita notas tão duvidosas", lamentou. Preocupado pelo conflito atual entre a Rússia e a Ucrânia, Kremer chegou a alterar o programa de suas apresentações.
Sem consequências?
Anna Netrebko é mundialmente famosa, e se apresenta nas casas de ópera mais importantes do mundo, embolsando cachês vultosos. Em Viena recebeu 15 mil euros por noite de apresentação, na Metropolitan Opera de Nova York, 17 mil dólares.
No próximo ano, ela irá se apresentar na Ópera Estatal da Baviera e na de Viena. Ainda é incerto se o episódio de São Petersburgo poderá lhe trazer consequências para a soprano, cuja principal fonte de renda são os concertos que realiza no Ocidente. O diretor da Ópera de Viena se recusou a comentar, o da Baviera, segundo a casa, estava doente e indisponível para suma declaração.
Em sua página na rede social Facebook, a cantora recebeu severas críticas, mas também elogios. A gama ia desde "Que vergonha!" até palavras agradecidas e manifestações de respeito, passando por fãs decepcionados e comentários de que ela deveria se limitar a cantar. O jornal russo Moskowski Komsomoleza elogiou: "Muito bem, Anna, esperamos apenas que não se torne alvo de sanções do Ocidente."
O website ucraniano Obosrewatel.comcriticou Netrebko por não ter mencionado com "nenhuma palavra" o fato de o sofrimento dos músicos e da ópera local serem consequência das ações da autoproclamada "República de Donetsk". Os separatistas pró-Rússia no leste ucraniano lutam atualmente contra o Exército nacional, e o governo central de Kiev suspendeu a transferência de recursos para a Ópera de Donetsk.
Apoio a Putin
Apesar das críticas, a emissora de TV alemã ZDF, de direito público, vai manter em sua programação a transmissão do concerto de fim de ano com Anna Netrebko na Ópera Semper. Interpelada pela DW, a emissora declarou que não tem motivos para fazer mudanças no elenco da opereta A Princesa Cigana(Csárdásfürstin), de Emmerich Kálmán, transmitida de Dresden.
Netrebko já se declarara repetidas vezes uma patriota russa, que apoia Vladimir Putin. Antes das eleições presidenciais de 2012, ela se empenhou pelo retorno de Putin ao Kremlin, alegando que "não há alternativas".
Ela não está sozinha nesse posicionamento, na alta cena cultural russa. Quando as forças do país ocuparam a península da Crimeia, o influente maestro Valery Gergiev assinou uma carta de apoio a Moscou, publicada pelo ministério da Cultura da Rússia. Outros signatários eminentes foram o pianista Denis Matsuev, o violinista e maestro Vladimir Spivakov, e as cantoras líricas Hibla Gerzmava e Elena Obraztsova.
A partir de 2015, Gergiev assume a direção musical da Filarmônica de Munique. Na época da carta, Tatiana Lukina, diretora da Associação Cultural Teuto-Russa MIR, sediada na capital bávara, defendeu o maestro, afirmando que "é preciso julgar um músico pelo seu talento, não por suas declarações políticas, muito menos numa sociedade democrática".
No conflito em questão, tal liberalidade política parece cada vez mais difícil de sustentar. Segundo estimativas da ONU, desde abril deste ano, 4.300 pessoas já morreram nos choques no leste da Ucrânia.