Do estado de artista ao Estado de artistas
30 de setembro de 2006A relação entre arte e política sempre se manteve um tema atual, independentemente das questões polemizadas em diversas épocas. Na Alemanha, as recentes controvérsias em torno da indicação de Peter Handke para o prêmio Heinrich Heine e as revelações do Nobel de literatura Günter Grass sobre seu envolvimento com o nazismo marcaram durante este ano os debates nacionais sobre a legitimidade de um artista se envolver em política ou não.
Uma coletânea de artigos acadêmicos recém-lançada na Alemanha aborda as utopias estéticas e políticas de diversas épocas, mostrando a complexidade das possíveis relações entre artista e Estado.
Vom Künstlerstaat (Do Estado de Artistas), organizado pelo diretor do Arquivo de Literatura de Marbach, Ulrich Raulff, reúne reflexões variadas desde a Roma de Nero até a modernidade, passando pela Weimar de Goethe e pela relação entre o rei Ludwig II da Baviera e o compositor Richard Wagner.
Para além dos limites entre arte e política
Os estudos reunidos no livro, escritos por historiadores da arte, teóricos de literatura e especialistas em história da mentalidade, investigam tanto a concepção da arte de governar quanto projetos de um Estado dominado por artistas. "Utopias estéticas e políticas" é o subtítulo do volume que delineia as tentativas de suspender os limites entre arte e política.
A noção de "Estado estético", formulada por Friedrich von Schiller no final do século 18, jamais abandonou o imaginário da Alemanha. Em suas famosas Cartas sobre a Educação Estética do Homem, o poeta imagina uma "política do belo", um "Estado estético" em que um ser humano se defronte com o outro "apenas como forma, como objeto de um jogo livre".
"Dar liberdade através da liberdade é a lei fundamental deste reino", formula Schiller, projetando uma nação cultural como resposta alemã à então recém-ocorrida Revolução Francesa.
Da Weimar de Goethe à "Alemanha secreta"
Este Estado igualitário poderia existir em qualquer alma nobre, explica Schiller, mas na realidade só se encontraria mesmo em poucos círculos seletos. Mesmo longe de concretizar o ideal um Estado estético, a Weimar clássica da princesa Anna Amalia – que introduziu na corte pensadores e literatos como Herder, Wieland e Goethe – proporcionou pelo menos a convivência próxima de artistas e governantes, aproximando-se da utopia elitista de um Estado de artistas.
A idéia de um Estado de artistas foi reavivada pelo poeta Stefan George no início dos anos 20 do último século. Um Estado sem território nem sede de governo (embora Heidelberg fosse a "capital secreta"), governado por um caminhante, sem meios e patrimônio pessoal, a não ser alguns escritos impressos.
O chamado Círculo de George, denominado "Alemanha secreta" por seus adeptos, reuniu até a morte do poeta, em 1933, um grupo de literatos numa sociedade paralela comprometida com o esteticismo.
Estado de um único
Quarenta anos após a morte de George, o escritor Arno Schmidt – como importante renovador da linguagem do romance alemão no pós-guerra – viria a receber o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt. E nesta ocasião discursaria com ironia sobre a relação entre artista, Estado e sociedade:
"Goethe – e sua mão ainda continua dando bênçãos! – recomendou uma vez, provavelmente na mais sã consciência, que o poeta caminhasse com o rei. [...] A vinte quilômetros a leste do lugarejo onde moro, tem se ordenado de forma ainda mais consciente que o poeta caminhe com o operário. [...] (A penúltima possibilidade que resta, ou seja, a de o poeta caminhar com o poeta, é algo que eu nem chego a aventar – afinal, eles só se atrapalhariam mutuamente!). Mas soma das minhas experiências diz que o escritor deveria mesmo andar sozinho."
É justamente esta tendência do artista ao isolamento que torna ainda mais interessante observar seu esforço de se religar à sociedade através de novas concepções de Estado. Por mais elitistas que sejam as utopias de um Estado estético, elas resgatam algo que a política enquanto sistema tende a desconsiderar: um espaço social em que seja possível cultivar singularidades individuais.
Ulrich Raulff (org.): Vom Künstlerstaat – Ästhetische und politische Utopien (Do Estado de Artistas – Utopias estéticas e políticas). Munique / Viena: Carl Hanser Verlag 2006. 187p.