Dificuldades na pandemia geram temores de abandono escolar
30 de junho de 2020Faz três meses que os filhos de Ivanilde da Silva perderam por completo o contato com a rotina de aprendizado. Sem acesso à internet e a sete quilômetros de distância da escola, eles e os outros alunos da aldeia Rio Bonito, em Ubatuba, litoral paulista, estão distantes do ensino formal desde o início da quarentena no estado de São Paulo, em 23 de março.
"As crianças estão em casa, sem atividades", diz Silva, líder comunitária. "Até o momento, não recebi nenhuma informação", responde quando questionada sobre as orientações dadas aos estudantes.
Em São Paulo, que tem 3,5 milhões de alunos apenas na rede estadual, o ensino pela internet foi implementado a partir de 3 de abril. As atividades preparadas pelos professores também podem ser retiradas nas escolas na versão impressa, informa a Secretaria de Educação.
Na era pré-pandemia, os alunos da aldeia Rio Bonito eram levados de transporte escolar para a comunidade vizinha, onde fica a escola estadual indígena da Aldeia da Boa Vista. Em isolamento social para evitar a contaminação pelo novo coronavírus e sem condições de se deslocar, os pais que moram na Rio Bonito mantêm os filhos entretidos com as tarefas tradicionais do povo guarani.
O caso no litoral paulista não é único. Em todo o estado, a participação nas atividades formais escolares durante a pandemia tem sido limitada: somente 27% dos estudantes matriculados na rede estadual retornam as tarefas aos professores, afirma o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
"Falta inclusão digital tanto para professores quanto para os alunos", pontua Maria Izabel Azevedo Noronha, presidente da entidade, sobre as dificuldades.
Em todo o país, a adesão é limitada entre os 14,2 milhões de alunos matriculados nos ensinos fundamental e médio nas escolas estaduais, avalia Heleno Manoel Gomes Araújo Filho, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
"A frequência tem sido muito baixa", comenta Araújo Filho. Os motivos, argumenta, vão além da falta de acesso à internet. "Tem alunos que moram em locais sem saneamento, sem ambiente silencioso para estudar e cujos pais também não têm condições de ir à escola retirar material", complementa.
Em Pernambuco, por exemplo, a rede de TV pública, que alcança 60% do estado, também foi usada para transmitir conteúdo. Dos 580 mil estudantes, 8 mil acessaram aulas pela televisão na primeira semana, afirma Araújo Filho. "Duas semanas depois, esse número foi de 290 alunos, e depois caiu para 90", exemplifica.
A Secretaria de Educação de Pernambuco informou que o conteúdo também pode ser acessado por uma plataforma virtual e que atingiria cerca de 80% dos alunos.
Medo e ansiedade
Pelas escolas municipais espalhadas pelos 5.570 municípios brasileiros, a situação não é diferente. Dos 16 milhões de alunos matriculados, estima-se que até 5 milhões estejam completamente desconectados durante a pandemia, segundo levantamento da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
É o caso dos filhos que moram com Joice Costa, que estão no quarto e quinto ano do ensino fundamental de uma escola municipal num bairro afastado do centro de Belo Horizonte. O único celular da casa não tem memória suficiente para navegar pela plataforma online usada para o aprendizado à distância.
"Eles estão sem os estudos", diz Costa, que está desempregada. "Eles sentem muita falta da escola e dizem que estão com muito medo de ter que repetir o ano", afirma.
Por outro lado, a volta às aulas, ainda sem data em Minas Gerais, preocupa. "Fico preocupada principalmente com o mais novo, que é do grupo de risco por causa da diabetes", diz Costa sobre o medo do contágio pelo novo coronavírus.
Para Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da Undime, o momento de ansiedade devido à pandemia e de tensão trazida pelo uso de novas tecnologias pode ter consequências sérias.
"Nossa grande preocupação é haver perda de vínculo dos alunos. Isso pode gerar abandono da escola", comenta Garcia. "Tem famílias que estão falando em tirar os filhos da escola e retornar no ano que vem. O ano não está perdido. A gente tem condição e tem ferramentas técnicas para reorganizar o conteúdo", ressalta.
Dados do Ministério da Educação apontam que pelo menos 55 milhões de pessoas estão envolvidas com o trabalho escolar no país: são estudantes matriculados na educação básica, pública e privada, e os profissionais. O número equivale a mais de 25% da população estimada no Brasil.
Estresse entre professores
Além da adaptação rápida e obrigatória às mídia digitais, professores da rede municipal de São José dos Campos, interior paulista, vivem uma situação de estresse particular. Embora a recomendação dos órgãos de saúde seja o distanciamento social, os profissionais da educação são obrigados a cumprir expediente presencial na escola desde o dia 3 de junho.
Em muitos casos, eles precisam se aglomerar num espaço determinado para conseguir acessar o sinal da internet. "Temos medo de nos infectarmos e de infectar os familiares que estão em casa respeitando o afastamento social", afirma um profissional que, por medo de retaliação, pediu para não ter o nome revelado.
"Além dos professores, temos na escola a equipe de limpeza, administrativo e estagiários", complementa. "Na minha escola, em particular, temos três casos positivos de covid-19 e sete que aguardam resultado de exames."
Questionada, a administração municipal respondeu que a presença na escola é para que os professores "possam utilizar os materiais pedagógicos e internet, deixando de gastar em casa" e que os cuidados recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são observados.
A prefeitura não informou o número de casos de covid-19 confirmados entre os profissionais desde que passaram a dar expediente nas escolas.
Para a Undime, trata-se de uma "aberração". A falta de diálogo agrava o estresse da época, comenta Garcia. "A pandemia reforça a importância de se ouvir as partes. Tem muitos professores adoentados, sobrecarregados. De repente, professor teve que fazer roteiro, gravar aula, postar aula, orientar família, e ele também vivendo o drama de uma pandemia", exemplifica.
Vínculo e a vida que virá depois
A recomendação da CNTE para os dirigentes é estimular o cuidado com a vida. "Pandemia é uma situação inusitada. Temos que ter práticas solidárias nesse momento em que estudantes estão morrendo, em que estamos perdendo alunos da educação de jovens e adultos e seus familiares. Fazer contato direto é uma prática solidária. Não temos que exigir a escolarização neste momento", opina Araújo Filho.
Segundo a avaliação de Flaviany Ribeiro, psicóloga escolar e professora da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, é preciso ter cautela para preservar a saúde mental dos estudantes nesta fase de isolamento.
"Para além de conteúdo acadêmico e pedagógico, os prejuízos psíquicos que podem vir são muito preocupantes", comenta Ribeiro, citando como exemplo crise de ansiedade, fobias, medo de convivência e depressão.
"A escola deve estar presente principalmente para manter vivo o vínculo com o professor, com os colegas. Estimular cognitivamente as crianças. E, quando voltar para a sala de aula, tudo isso que está acontecendo tem que entrar para a pauta", opina a psicóloga.
Por enquanto, a volta da rede pública tem data para retorno em São Paulo. Com mais de 14 mil mortes por covid-19, o estado decretou que as escolas voltam com capacidade parcial a partir de 8 de setembro.
O anúncio não foi bem recebido por trabalhadores da área. "Não deveria haver uma preocupação de lançar uma data sem antes resolver o problema da pandemia", critica Noronha, da Apeoesp.
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