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HistóriaBrasil

Luiza Mahin: a mulher que virou mito da força negra feminina

20 de novembro de 2023

Não há consenso nem para a real existência da mãe de Luiz Gama, mas no imaginário a personagem se consolidou como revolucionária abolicionista. Mahin é primeiro perfil na série da DW sobre Consciência Negra.

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Foto de 1870 de uma mullher negra com um turbante
Como não há fotografias ou pinturas de Luiza Mahin, esta foto de 1870, conhecida como "Mulher de Turbante", acabou sendo usada para representá-la. Foto: Alberto Henschel

Não há nenhum registro conhecido sobre Luiza Mahin, mulher que possivelmente viveu na primeira metade do século 19, que seja anterior a uma carta autobiográfica escrita em 1880 pelo advogado, escritor e abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Nela, Gama apresenta-se como "filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã".

"Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa", prossegue o advogado. "Dava-se ao comércio — era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreição de escravos, que não tiveram efeito."

Gama menciona ainda que havia procurado, sem sucesso, sua mãe em ao menos três ocasiões até que, "em 1862, soube, por uns pretos minas, que a conheciam e que me deram sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna', em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram". "Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados' fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provadores", diz.

"Nada mais pude alcançar a respeito dela", finaliza o abolicionista.

"Na carta autobiográfica que escreveu, Gama afirmou que o nome de sua mãe era Luiza Mahin. Esse documento é, de certo modo, a ‘certidão de nascimento' dessa mulher que entrou para a memória histórica do povo negro brasileiro como uma grande referência na luta contra a escravidão", afirma a historiadora Aline Najara da Silva Gonçalves, autora do livro Luiza Mahin: Uma Rainha Africana no Brasil e da revista em quadrinhos Luiza Mahin: A Guerreira dos Malês.

Rainha da Bahia

A partir do texto de Gama, a figura de Mahin passou a constar em narrativas pretensamente historiográficas e obras de ficção. Muitos a colocam como líder da Revolta dos Malês, maior rebelião popular de escravizados da história, ocorrida em 1835 em Salvador. Mas não há consenso acerca disso e, diante da falta de registro, alguns historiadores chegam a acreditar até mesmo que ela tenha sido uma criação literária de Gama.

"Nota-se que Gama não se refere especificamente à Revolta dos Malês, a mais importante rebelião de escravizados na Bahia, ocorrida em 1835. Porém, o fato de ele situar a mãe em Salvador, nessa mesma época, dá margem à especulação de que ela tenha se envolvido na insurreição", afirma o jornalista Gilvan Ribeiro, autor do recém-lançado livro Malês: A Revolta dos Escravizados na Bahia e seu Legado.

Ribeiro enfatiza que "o único registro historiográfico" sobre a personagem é a tal carta de Gama — escrita à guisa de uma breve autobiografia para a publicação de um perfil no Almanaque Literário de São Paulo em 1881.

"As controvérsias são por conta da ausência de outros documentos que reafirmem sua existência. Para além da carta de Luiz Gama, seu filho, o que temos são menções em obras literárias ou historiográficas, que não deixam evidentes as fontes que sustentam algumas informações", pontua Gonçalves.

Ela acrescenta que, em sua dissertação de mestrado, apontou conexões plausíveis entre as descrições literárias e historiográficas da personagem. No livro Rebelião Escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês em 1835, o historiador João José Reis, professor na Universidade Federal da Bahia, define Mahin como um misto de "ficção abusiva, realidade possível e mito libertário".

"O que percebi, ao longo da pesquisa, é que muitos podem ter sido os motivos para a ausência de documentos escritos formais sobre sua trajetória, inclusive a queima sistemática de arquivos sobre a escravidão, esta é uma hipótese. Entretanto, características físicas, psicológicas e atitudinais da Luiza Mahin, apresentadas por Gama, nos permite conectá-la a um coletivo de mulheres negras ganhadeiras que, no contexto do século 19, reagiram ao escravismo e se articularam à frente de levantes", diz Gonçalves.

"Caso o levante dos Malês tivesse sido vitorioso, Luiza teria sido reconhecida como Rainha da Bahia", aponta sinopse biográfica a respeito dela publicada pela Fundação Cultural Palmares.

Mito inspira coletivos negros feministas

"Nos documentos do processo judicial que reúne depoimentos dos presos acusados de tomarem parte na revolta, bem como de testemunhas, não há qualquer menção ao nome de Luiza Mahin", destaca o jornalista Ribeiro. "Por esse motivo, de uma forma geral, os historiadores da atualidade não reconhecem sua participação no movimento."

Mas ele mesmo afirma que as coisas não são tão nítidas. "Mesmo assim, com base na oralidade afro-brasileira, ela se tornou um mito que ganha vulto a cada dia e inspira os coletivos negros feministas, que lhe atribuem papel de liderança na revolta. Algo bastante improvável, tanto pela análise das investigações policiais na ocasião como também pela circunstância de os malês serem muçulmanos, cuja cultura relegava as mulheres a uma condição subalterna", contextualiza.

"Há muita controvérsia a esse respeito, afinal, se não existem elementos que comprovem a atuação de Luiza Mahin, tampouco pode-se afirmar categoricamente que ela não esteve ao redor dos núcleos conspiratórios", afirma o jornalista. "Como mulher negra e ex-escravizada, é natural que não haja registros formais dela em documentos elaborados pelas autoridades constituídas em uma sociedade fortemente patriarcal, na qual se procurava diminuir a influência feminina no curso dos acontecimentos."

Se existiu de fato, Mahin deve ter nascido no início do século 19. Ela seria do povo maí, uma nação tribal do Benin, e isso explica o seu sobrenome. E teria conseguido a alforria em 1812, tornando-se então uma vendedora de quitutes na capital baiana.

Acredita-se que ela esteve envolvida de alguma forma em todos os levantes de escravos ocorridos na então província da Bahia ao longo do século 19. Segundo alguns pesquisadores, ela utilizava seu tabuleiro para, mais do que quitutes, distribuir mensagens cifradas aos escravizados propensos a participar das revoltas, e isto teria provocado tanto a dos Malês, em 1835, quanto a Sabinada, que ocorreu entre 1837 e 1838 — esta última, de cunho separatista.

Perseguida por conta dessas rebeliões, ela teria se mudado para o Rio de Janeiro, então capital federal, onde acabaria presa e deportada para a Angola ou, de acordo com outras fontes, mandada ao Maranhão. A Fundação Palmares, em texto publicado a respeito de Mahin, acredita no envio para Angola, embora frise que "não existe, entretanto, nenhum documento que comprove essa informação".

Arquétipo da mulher negra

As lições deixadas por Mahin são imensas, segundo Gonçalves. "Foi uma grande estrategista, articuladora, empreendedora e revolucionária. Ela deixa o legado de luta por resistência, afirmação de direitos e negação de um sistema opressor e excludente. Além disso, como mãe, deixa o exemplo de uma maternidade em que sua potência como mulher, empreendedora e ativista não é sufocada pelo maternal", ressalta Gonçalves. "Pelo contrário! Ela prepara seu filho, ainda que muito novo, ao enfrentamento do mundo e à compreensão da importância de manter-se íntegro e forte."

A historiadora diz ainda que é muito importante lançar um olhar sobre figuras como Mahin, porque houve um "processo de invisibilização da trajetória de mulheres negras" no Brasil que ainda provoca uma "negação de existências". Ela situa a mãe de Gama como umas das "protagonistas de nossa liberdade".

Para Ribeiro, Mahin "projeta a mulher negra como protagonista em um episódio importante da história do Brasil, um papel que sempre lhe foi negado pela versão oficial escrita por homens brancos da elite intelectual e econômica, responsáveis pela construção da narrativa sob uma ótica eurocêntrica e conservadora."

"Luiza Mahin surge como um arquétipo que representa um conjunto de mulheres negras com personalidade forte, responsáveis pelo sustento da família com dedicação ao trabalho, mas sem se deixar dominar", comenta o jornalista. "Dotada de beleza, altivez e rebeldia, ela serve como inspiração para as meninas e mulheres negras assumirem uma postura altiva e combativa frente ao racismo estrutural que permeia toda a sociedade brasileira."

Outros atributos acabaram sendo atribuídos a Mahin ao longo do tempo, comenta Ribeiro. E isso acabou extrapolando a descrição original de Gama. "Cada obra ficcional a seu respeito acrescenta um dado novo no imaginário popular, que a partir dali passa a ser difundido como se fosse verdadeiro", diz o jornalista. Para Ribeiro, "o mito se agiganta cada vez mais e se multiplica".

No dia 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra em todo o Brasil. Data é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro. A DW publica, até o dia 24 de novembro, uma série de perfis de personagens que deixaram marcas na história brasileira e que são pouco lembrados ou conhecidos.