Deltan incentivou cerco da Lava Jato a Toffoli
1 de agosto de 2019Diálogos atribuídos a procuradores da Operação Lava Jato obtidos pelo The Intercept Brasil e publicados nesta quinta-feira (01/08) pelo jornal Folha de S.Paulo sugerem que o procurador Deltan Dallagnol incentivou seus colegas em Brasília e Curitiba a investigar em 2016 o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, de forma sigilosa.
Na época, segundo a publicação, o atual presidente do STF começava a ser visto pelos integrantes da Lava Jato como um adversário disposto a frear o avanço da operação. As mensagens obtidas apontam que Deltan buscou informações sobre as finanças pessoais de Toffoli e sua mulher, Roberta Rangel, e evidências que os ligassem a empreiteiras envolvidas com a corrupção na Petrobras.
Segundo a Folha, ministros do STF não podem ser investigados por procuradores da primeira instância, como Deltan e demais integrantes da força-tarefa. A Constituição afirma que eles só podem ser investigados com a autorização do próprio tribunal, onde quem atua em nome do Ministério Público Federal (MPF) é o procurador-geral da República.
As mensagens sugerem que Deltan desprezou esses limites ao estimular uma ofensiva contra Toffoli e mostram que ele também recorreu à Receita Federal para obter dados sobre o escritório de advocacia da mulher do ministro. Deltan começou a manifestar interesse por Toffoli em julho de 2016, segundo a Folha, quando a empreiteira OAS negociava um acordo para colaborar com as investigações da força-tarefa em troca de benefícios para seus executivos.
Em 13 de julho, Deltan fez uma consulta aos procuradores que negociavam com a empresa. "Caros, a OAS trouxe a questão do apto do Toffoli?", perguntou Deltan no grupo que eles usavam no aplicativo de troca de mensagens Telegram. "Que eu saiba não", respondeu o promotor Sérgio Bruno Cabral Fernandes, de Brasília, acrescentando: "Temos que ver como abordar esse assunto. Com cautela."
Duas semanas depois, em 27 de julho, Deltan procurou Eduardo Pelella, chefe de gabinete do então procurador-geral, Rodrigo Janot, para repassar informações que apontavam Toffoli como sócio de um primo em um hotel no interior do Paraná. Deltan, porém, não indicou a origem da informação.
No dia seguinte, Deltan insistiu com o assessor de Janot. "Queria refletir em dados de inteligência para eventualmente alimentar Vcs”, escreveu. "Sei que o competente é o PGR [Procuradoria-Geral da República] rs, mas talvez possa contribuir com Vcs com alguma informação, acessando umas fontes."
Deltan afirma ainda: "Vc conseguiria por favor descobrir o endereço do apto do Toffoli que foi reformado?", perguntou. "Foi casa", respondeu Pelella. O assessor de Janot informou o endereço a Deltan dias depois. Todas as mensagens são reproduzidas pela Folha com a grafia encontrada nos arquivos originais obtidos pelo The Intercept, incluindo erros de português e abreviaturas.
Em suas primeiras reuniões com procuradores da Lava Jato em 2016, segundo a Folha, os advogados da OAS afirmaram que a empreiteira havia participado de uma reforma na casa de Toffoli em Brasília. Os serviços, prossegue a publicação, teriam sido executados por outra empresa indicada pela construtora ao ministro, e ele fora o responsável pelo pagamento.
O ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, afirmou ter tratado do assunto com Toffoli e era réu em vários processos da Lava Jato, disse a seus advogados que não havia nada de errado na reforma, mas o caso despertou a curiosidade dos procuradores mesmo assim.
Interesses da Lava Jato
Nos meses anteriores, afirma a Folha, duas decisões de Toffoli no STF haviam contrariado os interesses da Lava Jato. O ministro votou para manter longe de Curitiba as investigações sobre corrupção na Eletronuclear e soltou o ex-ministro petista Paulo Bernardo, poucos dias após sua prisão pela equipe da Lava Jato, em São Paulo.
Na época, os procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos, ambos da força-tarefa de Curitiba, publicaram um artigo na Folha criticando duramente a decisão de Toffoli. As mensagens obtidas pelo The Intercept não esclarecem se alguma investigação forma sobre o ministro do STF foi aberta, mas mostram que Deltan continuou insistindo no assunto mesmo depois que um vazamento obrigou os procuradores a recuar.
Em agosto, a revista Veja publicou uma reportagem sobre a reforma na casa de Toffoli, apontando a delação de Léo Pinheiro como fonte das informações. O vazamento, segundo a Folha, causou mal-estar no Supremo e levou a PGR a suspender as negociações com a OAS, para evitar uma crise que poderia prejudicar o andamento de outras investigações.
As mensagens mostram agora que esse rompimento provocou uma divisão na força-tarefa de Curitiba. Carlos Fernando defendeu a medida, mas Deltan achava que o recuo seria interpretado como uma tentativa de proteger Toffoli e o STF, impedindo a apuração de desvios.
"Qdo chega no judiciário, eles se fecham", afirmou Deltan aos seus colegas em 21 de agosto, um dia após a reportagem sobre Toffoli chegar às bancas. "Corrupção para apurar é a dos outros." Segundo a Folha, Carlos Fernando temia que os ministros do Supremo reagissem impondo obstáculos para novos acordos de colaboração e criando outras dificuldades para a Lava Jato.
"Só devemos agir em relação ao STF com provas robustas", escreveu. "O que está em jogo aqui é o próprio instituto da colaboração. Quanto a OAS e ao toffoli, as coisas vão crescer e talvez daí surjam provas."
Algumas horas depois, o procurador Orlando Martello sugeriu que os colegas pedissem à Secretaria de Pesquisa e Análise (SPEA) da PGR um levantamento sobre pagamentos da OAS ao escritório da mulher de Toffoli.
"A respeito do Toffoli, peçam pesquisa para a Spea de pagamentos da OAS para o escritório da esposa do rapaz q terão mais alguns assuntos para a veja", disse Orlando no Telegram. "Não é nada relevante, mas acho q da uns 500 mil".
Em resposta ao colega, Deltan afirmou que a Receita Federal já estava pesquisando o assunto, mas disse que não sabia dos pagamentos que teriam sido feitos pela OAS. "A RF [Receita Federal] tá olhando", escreveu o chefe da força-tarefa. "Mas isso eu não sabia".
A Folha lembra que, dias após a publicação da reportagem sobre a delação da OAS, o ministro Gilmar Mendes saiu em defesa de Toffoli e do STF. Ele apontou ainda os procuradores da Lava Jato como responsáveis pelo vazamento, acusando-os de abuso de autoridade.
Deltan propôs aos colegas a divulgação de uma nota em resposta a Gilmar Mendes, mas não conseguiu apoio suficiente para a iniciativa. "Não acho que seja uma boa estratégia", afirmou Pelella. "Isso tende a acirrar os ânimos no STF."
Logo depois, Deltan escreveu a Orlando Martello para ter novidades sobre a mulher de Toffoli. As pesquisas não pareciam ter avançado, e o chefe da força-tarefa sugeriu que o colega também procurasse informações sobre a mulher de Gilmar, Guiomar Mendes.
"Tem uma conversa de que haveria recebimentos cruzados pelas esposas do Toffoli e Gilmar", escreveu Deltan. "Tem mta especulação. Temos a prova disso na nossa base? Vc teve contato com isso?"
Martello disse que não tinha nada que confirmasse as suspeitas, mas compartilhou com Deltan informações que recebera um ano antes sobre a atuação do escritório da mulher de Toffoli na defesa de outra empreiteira, a Queiroz Galvão, no Tribunal de Contas da União (TCU).
O informante de Martello, que ele não identificou na conversa com Deltan, dizia ter encontrado uma procuração que nomeava Toffoli e a mulher como representantes da empresa no TCU e sugeria que essa ligação obrigava o ministro a se afastar dos processos da Lava Jato.
De acordo com a Folha, Toffoli e a mulher foram sócios do mesmo escritório de advocacia até 2007, quando ele saiu para assumir a chefia da Advocacia-Geral da União. Duas semanas depois do diálogo de Deltan com Martello, a Folha publicou uma matéria sobre pagamentos que um consórcio liderado pela Queiroz Galvão fez ao escritório em 2008 e 2011, no valor total de 300 mil reais.
As mulheres de Toffoli e Gilmar foram mesmo alvo da Receita. Em fevereiro deste ano, o jornal O Estado de S. Paulo informou que elas fizeram parte de um grupo de 134 contribuintes investigados por uma equipe especial criada pelo fisco em 2017.
Outros alvos
Segundo a Folha, Toffoli não foi o único alvo da Lava Jato na cúpula do Judiciário. As mensagens obtidas pelo The Intercept mostram que Deltan também usou a delação da OAS para tentar barrar a indicação de um ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, para a vaga aberta no STF com a morte de Teori Zavascki em 2017.
Quando o nome de Martins apareceu na imprensa como um dos cotados para a vaga, Deltan procurou Eduardo Pelella para sugerir que o procurador-geral Janot alertasse o então presidente Michel Temer de que ele era um dos alvos da delação de Léo Pinheiro.
"É importante o PGR levar ao Temer a questão do Humberto Martins, que é mencinoado na OAS como recebendo propina", disse Deltan ao colega. "Deixa com 'nós'", respondeu Pelella.
O chefe da força-tarefa de Curitiba sugeriu que o assessor de Janot conferisse os documentos anexados pela OAS à sua proposta de colaboração, mas depois se lembrou de que a Lava Jato não recebera até então nenhum relato escrito sobre Martins.
Mesmo assim, Deltan insistiu com Pelella para que avisasse o presidente. "Não tá nos anexos, mas iriam entregar. Só não lembramos se era corrupção ou filho... vou ver se alguém lembra e qq coisa aviso, mas já cabe a ponderação pq seria incompativel", afirmou no Telegram.
Fazia cinco meses que as negociações com a OAS tinham sido encerradas. Como o acordo com a empreiteira não fora assinado nem homologado pela Justiça, as informações fornecidas por Léo Pinheiro durante as negociações não podiam ser usadas pelos investigadores.
O anexo com o relato sobre Martins só surgiu após a retomada das negociações, em março de 2017. Segundo Léo Pinheiro, a OAS pagou 1 milhão de reais a um filho do ministro em 2013 para obter uma decisão favorável no STJ. Em janeiro deste ano, Martins afirmou à Folha que nunca atendeu pedidos da OAS e sempre se declarou impedido de julgar ações em que o filho atue.
Quando os procuradores voltaram à mesa de negociações com os advogados da OAS, Léo Pinheiro estava preso em Curitiba e se preparava para depor no processo em que incriminou o ex-presidente Lula, o caso do tríplex de Guarujá, em São Paulo.
O acordo com o empreiteiro foi assinado no fim do ano passado, mas até hoje não foi encaminhado pela procuradora-geral, Raquel Dodge, ao Supremo para homologação. Sem isso, Pinheiro não pode sair da cadeia e receber os benefícios acertados com a Lava Jato.
Outro lado
Em resposta à Folha, a força-tarefa à frente da Operação Lava Jato em Curitiba afirmou que é seu dever encaminhar à PGR informações sobre autoridades com direito a foro especial no STF sempre que as recebe, e que isso tem sido feito de forma legal.
A força-tarefa não fez comentários específicos sobre o conteúdo das mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil, que revelam iniciativas do procurador Deltan Dallagnol para levantar informações sobre os ministros Dias Toffoli, atual presidente do STF, e Gilmar Mendes, além de suas respectivas mulheres.
"É comum o intercâmbio de informações para verificar, em caráter preliminar, supostos fatos de que o Ministério Público tenha conhecimento”, afirmou a força-tarefa, por meio de nota. "Isso impede inclusive que se dê início a apurações injustificadas.”
Segundo a força-tarefa, informações sobre autoridades com foro no STF são encaminhadas "por questão de dever", e "sem exceção", à PGR, "a quem compete decidir sobre eventual encaminhamento".
"A Lava Jato só analisa informações bancárias e fiscais após decisão judicial que afaste o sigilo ou quando formalmente encaminhadas nos termos da lei", acrescentou.
A Folha perguntou à força-tarefa como Deltan soube da participação da empreiteira OAS na reforma da casa de Toffoli, e como soube que a Receita Federal estava analisando as finanças do escritório de sua mulher, Roberta Rangel, mas o procurador preferiu não se manifestar.
O chefe da força-tarefa também não quis esclarecer por que usou informações da delação do empreiteiro Léo Pinheiro para tentar impedir a nomeação do ministro Humberto Martins para uma vaga no Supremo, como revelam as mensagens obtidas pelo The Intercept.
A força-tarefa reafirmou que não reconhece a autenticidade do material, e que ele foi obtido de forma criminosa. "Os procuradores pautam sua conduta pela lei e pela ética e renovam sua confiança e respeito ao Supremo Tribunal Federal", acrescenta a nota.
O procurador Eduardo Pelella, que trocou informações sobre Toffoli com Deltan, não quis fazer comentários. Informado sobre o conteúdo das mensagens e seu contexto, disse que não tem como verificar sua autenticidade "para que se possam identificar falsas imputações".
Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes não quiseram se manifestar sobre as mensagens, assim como a Procuradoria-Geral da República. O ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, afirmou estranhar sua citação pela delação de Léo Pinheiro e disse que sempre decidiu contrariamente aos interesses da OAS e de seu ex-presidente, na maioria dos casos em decisões colegiadas.
FC/ots
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