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"Defesa do conhecimento tradicional é prioridade no Brasil"

Mariana Ribeiro13 de junho de 2006

Em entrevista à DW-WORLD, a professora Carolina Rossini, da FGV, fala sobre a questão do direito autoral relacionado a conhecimentos tradicionais e sobre biopirataria no Brasil.

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O combate à biopirataria ainda é projeto de lei no BrasilFoto: AP

A questão da propriedade intelectual aplicada aos conhecimentos tradicionais tem sido discutida no âmbito da economia e é pauta de conferências da Organização Mundial de Comércio, como a que aconteceu em Gênova, de 22 a 27 de maio últimos.

A respeito do conhecimento e da medicina tradicional, em particular, há também na Alemanha um intenso debate sobre como as leis de propriedade intelectual podem injustamente privar as comunidades de desfrutar os benefícios de seus conhecimentos.

Benefícios comerciais pelo conhecimento tradicional

A biopirataria, nesse contexto, é um claro exemplo de como os recursos de países em desenvolvimento podem ser acessados sem consentimento e transformados em direitos proprietários nos países industrializados, os quais passam a vendê-los aos próprios detentores originais desses materiais biológicos.

Uma das questões éticas de maior importância é como os benefícios comerciais derivados da venda de produtos baseados na medicina tradicional podem ser divididos de forma justa entre que desenvolveram este conhecimento e os que o distribuem de forma comercial.

Carolina Rossini
Carolina Rossini, da Fundação Getúlio VargasFoto: Carolina Rossini

Em entrevista à DW-WORLD, a professora Carolina Rossini, da Fundação Getúlio Vargas, apresenta os esforços brasileiros no sentido da proteção de sua biodiversidade, da concessão de patentes e do direito autoral.

DW-WORLD: Muitos países argumentam que a patente é essencial para a comercialização das invenções baseadas no acesso legitimado ao conhecimento tradicional, e que medidas para restringi-la seriam prejudiciais ao sucesso do desenvolvimento de novos produtos. Há a possibilidade de se conceder uma patente sem que se perca o "direito de autoria"?

Carolina Rossini: Os conhecimentos tradicionais são aqueles detidos pelas chamadas comunidades locais e comunidades indígenas. Como o próprio nome indica, eles estão ligados a uma determinada comunidade e à sua cultura, formada por várias gerações e em constante mutação. Por esse caráter “comunitário”, o sistema de direitos autorais atualmente existente, baseado no indivíduo, não é diretamente aplicável. Assim, não há como se falar, na maior parte das vezes, em “direitos de autoria”, nessa área.

Quando falamos em patente relacionada a conhecimentos tradicionais, dizemos que essa patente poderá ser obtida por uma instituição somente quando estes requisitos forem cumpridos: o consentimento prévio informado e a repartição justa e eqüitativa de benefícios, previstos na Convenção de Diversidade Biológica e regulamentados por legislações específicas no Brasil.

De que forma o Brasil protege sua biodiversidade e seus conhecimentos tradicionais da biopirataria?

O termo "biopirataria" não existe juridicamente; fala-se, na verdade, em "acesso não autorizado a recursos genéticos presentes na biodiversidade e a conhecimentos tradicionais associados", para o qual há no Brasil uma legislação especifica. Trata-se de uma medida provisória, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, e a repartição de benefícios resultantes da utilização de ambos.

Além disso, há o Decreto 5.459, que o regulamenta o art. 30 dessa MP, disciplinando as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Também em junho de 2005, foi firmado acordo de cooperação técnica com a polícia federal, a Agência Brasileira de Inteligência e o Ibama.

As iniciativas que atuam neste sentido mostram resultados satisfatórios?

Representam um avanço, mas ainda há muito a ser feito num país tão grande como o Brasil, que faz parte do grupo de países megadiversos. A fiscalização precisa ser melhorada e é necessário que o anteprojeto de lei sobre o tema, que está na Casa Civil, seja convertido em lei, para que possa haver sanções penais para seu descumprimento. Também é necessário conscientizar as comunidades tradicionais e o setor acadêmico, entre outros, da existência da legislação e da importância de ela ser respeitada.

No âmbito internacional, o Brasil tem defendido a negociação de um regime internacional sobre acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios que determinaria o respeito à legislação nacional sobre o tema.

Continue lendo na próxima página a entrevista com a professora Carolina Rossini.

A Convenção sobre Diversidade Biológica é respeitada no Brasil?

A CDB é a convenção resultante da Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento que aconteceu no Rio de Janeiro em 1992 – a ECO 92 – e tem como meta a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos beneficios resultantes da utilização dos recursos genéticos. O primeiro país a assiná-la foi o Brasil, que a ratificou em 1994. Ele tem sido também um dos países mais atuantes na negociação e regulamentação da Convenção.

Qual é a importância de países em desenvolvimento, como o Brasil, receberem parte do lucro da comercialização de produtos desenvolvidos a partir de conhecimentos tradicionais?

Medizinischer Unterricht im Dschungel von Ecuador
Medicina tradicional: base para a fabricação de novos remédiosFoto: Lisa Schlein

Há que se tomar muito cuidado quando pensamos em retribuição econômico-financeira para recompensar obras ou produtos derivados de Conhecimentos Tradicionais. A repartição de benefícios prevista na CDB e pela legislação brasileira não engloba somente retorno financeiro, mas sim, e principalmente, a transferência de tecnologia e construção de capacidade e conhecimento, ou seja, existe uma clara preocupação com a educação.

Muitos cientistas sociais apontam uma séria inquietação quanto ao retorno financeiro, já que isto pode implicar o deterioramento e erosão da cultura de determinada comunidade, pois existe a hipótese de a comunidade passar somente a priorizar aquela produção ou manifestação cultural que traga alguma forma de lucro.

Esse capital deve ir diretamente para as comunidades que detinham este conhecimento ou deve ser também investido em pesquisa e desenvolvimento do próprio país?

Fala-se que as próprias comunidades deveriam recebê-lo, tendo sempre em mente o risco anteriormente apontado. Ademais disso, muitos países já estão optando pela constituição de um fundo a ser distribuído por todas as comunidades como uma forma de política pública de preservação das mesmas, visto que muitas vezes é impossível identificar os detentores daquele conhecimento, tendo em vista a complexa gama de relações intercomunidades. Como resultado dessa preocupação e no âmbito da CDB, os países-membros estão discutindo a formulação de um sistema internacional que regulamente as formas de distribuição de benefícios.

Qual é a efetividade da ação do governo de ter publicado, em abril, uma lista com cinco mil nomes de plantas e animais em português, a fim de evitar que eles sejam registrados como marcas no exterior e utilizados comercialmente?

O Brasil sempre foi reticente em relação à elaboração de uma lista que enumerasse a biodiversidade brasileira, pois, além de ser impossível catalogar todos os representantes desta biodiversidade, há o risco de compreenderem a lista realizada como exaustiva. Há que se deixar claro que qualquer lista de biodiversidade não poderá ser considerada fechada, mas somente um meio de consulta prévia do que mais é conhecido e pode sofrer com o acesso não autorizado.

A lista elaborada pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual será encaminhada aos órgãos estrangeiros de registro de marcas (homólogos do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual – INPI), pela vias diplomáticas, para servir como subsídio ao examinador de marcas estrangeiro, de forma a evitar registros indevidos de marcas constituídas, sem suficiente forma distintiva, de nome genérico, necessário, comum ou simplesmente descritivo do próprio produto ou classe de produtos (ex.: “cupuaçu” para a própria fruta).

Servirá também como elemento de defesa nos eventuais procedimentos, administrativos ou judiciais, com vistas ao indeferimento de pedidos ou o cancelamento ou nulidade de registros considerados indevidos.