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Defensores do PL do aborto não se importam com crianças

Nina Lemos
Nina Lemos
18 de junho de 2024

Se apoiadores do "PL do estupro" realmente quisessem ajudar, em vez de punir meninas vítimas de violência, estariam pensando em aprovar mais dinheiro para a construção de creches em projetos de apoio a mães solo.

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Boneca com mão escondendo o rosto
PL antiaborto obrigaria crianças vítimas de estupro a levar a gravidez até o fimFoto: picture alliance/dpa/dpa-Zentralbild

"Toda a estrutura da família foi destruída". Essa frase foi exibida no domingo no Fantástico e foi dita por um familiar de uma menina de 14 anos que ficou famosa em 2020 pelos piores motivos. A garota, moradora do Espírito Santo, tinha dez anos quando foi estuprada por um tio, engravidou e virou um símbolo da violência com qual os "defensores da vida" (com muitas aspas mesmo) tratam as crianças vítimas de estupro no Brasil.

Em 2020, ao descobrir que a criança estava grávida, sua família entrou na Justiça pedindo que ela tivesse direito a um aborto legal – o que é previsto pela lei brasileira. Eles conseguiram, mas o procedimento foi feito em meio a manifestantes berrando na entrada do hospital, fanáticos tentando impedir que ela fizesse o que queria, ampla cobertura da mídia, ameaças e assédio psicológico. Ou seja, o que já era uma tragédia, piorou (e muito) com a ajuda da extrema direita e dos ativistas radicais contra o aborto.

Essa turma, que aumentou o trauma de uma criança e de uma família submetida a uma das piores coisas que podemos imaginar, é a mesma que está, hoje, defendendo a PL 1.904, chamada muito justamente de "PL do Estupro".

O absurdo do projeto de lei, que provoca indignação Brasil afora (e também repercussão no exterior), equipara a interrupção da gestação após 22 semanas ao homicídio, aumentando de dez para 20 anos a pena máxima para quem fizer o procedimento. O mesmo vale para crianças e mulheres que foram estupradas – que pela lei brasileira têm direito legal ao aborto.

O projeto foi colocado na quarta-feira para votação com urgência pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP.

E as crianças?

O autor do projeto é o "defensor da vida" (sic) Sóstenes Cavalcante, do PL. E agora, eu pergunto: ele e seus aliados estão preocupados com a vida das crianças? Não, certo?

Uma prova disso é que, se o projeto for aprovado, meninas vítimas de estupro (como a garota do Espírito Santo, que em geral, demoram mais tempo para descobrir ou contar que estão grávidas por desconhecimento do próprio corpo e também por vergonha da família) seriam obrigadas a levar a gravidez até o fim mesmo sem condições físicas e/ou psicológicas para isso. Ou seja, essa turma diz "lutar pela vida", mas não quer, de fato, proteger as crianças.

E não é só quando tentam obrigar crianças a gerarem frutos de estupro que eles provam que não ligam para elas. Se estivessem preocupados mesmo, em vez de punir meninas, eles estariam pensando, por exemplo, em aprovar mais dinheiro para a construção de creches, em projetos para dar apoio a mães solo – afinal mais da metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres.

Só para citar alguns exemplos do "amor" dessa turma pelas crianças. Durante a pandemia, o ex-presidente Jair Bolsonaro, do mesmo partido do deputado autor da "PL do estupro" e da turma "pró-vida", vetou o projeto que dava prioridade a mulheres chefes de família no recebimento do auxílio emergencial. Essas mães estavam desesperadas para comprar, por exemplo, comida para seus filhos. Ele também vetou um aumento da verba destinada a merendas escolares. Ou seja, eles defendem o feto, querem impedir mulheres e meninas de serem donas de seus corpos e puni-las, mas, se a mulher mantiver a gravidez e tiver o filho, ela e o filho que se se virem.

Outro motivo que nos leva a achar que realmente não é a preocupação com "vida" que move o autor da PL e seus defensores são as implicações políticas desse debate que toma conta do Brasil.

Segundo analistas políticos, Arthur Lira teria colocado esse projeto para ser votado com urgência por puro interesse político a quatro meses das eleições municipais. Não pela primeira vez, os direitos das mulheres estariam sendo usados como chantagem e moeda de troca pelos "donos do poder". "Além da convicção retrógrada há nisso uma campanha política oportunista, óbvio. A extrema direita, com apoio da direita, quer atrair Lula 3 para batalhas de alto risco", escreveu o colunista da Folha de S. Paulo Vinicius Torres Freire.

Acredito ser difícil que essa atrocidade seja aprovada. Isso porque a maioria dos brasileiros liga, sim, para crianças. Uma enquete online da Câmara dos Deputados sobre a PL já tem mais de um milhão de votos e 88% dos participantes afirmaram discordar totalmente do projeto. Mulheres (e também homens) tomam as ruas de todo o país contra o projeto e representantes de diversos segmentos da sociedade (independente de preferência partidária) se levantam contra o retrocesso. Há, no momento, uma espécie de repulsa à barbárie que esse projeto representa. Nem tudo está perdido.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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O estado das coisas

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.