Dalai Lama
3 de agosto de 2009
Deutsche Welle: Após 50 anos de exílio, o senhor ainda tem a esperança de retornar ao Tibete?
Dalai Lama: Isso é o que esperam todos os tibetanos. Do ponto de vista tibetano, a situação parece péssima e o problema, insolúvel. Porém, de uma perspectiva mais alta, temos grande esperança, sim. Há cada vez mais intelectuais e especialistas chineses que vêm se interessando pela causa tibetana e demonstrando apoio. Isso nos dá esperança.
O que o senhor pode fazer para convencer o governo chinês de que a sua reivindicação não é um Tibete independente – ou, segundo a norma linguística de Pequim: uma separação do Tibete da pátria chinesa –, mas sim uma "autêntica" autonomia?
Na verdade, o governo chinês sabe perfeitamente que não estou reivindicando um Tibete independente e que não sou nenhum separatista. Eles me tacham assim por mera maquinação política. Por exemplo, os manifestantes em Xinjiang estavam carregando bandeiras chinesas, mas mesmo assim foram incriminados como separatistas.
Por que Pequim resiste tanto ao seu retorno e o pintam com as piores cores em sua propaganda? Por exemplo, o presidente do Partido Comunista do Tibete, Zhang Qingli, o xingou de "lobo em pele de carneiro" e "demônio em forma de gente". O premiê Wen Jiabao o acusou de ter incitado pessoalmente os protestos.
Quando as pessoas ficam furiosas, tendem a xingar os outros. Não me importo com isso. Até mesmo o buda histórico chegou a ser difamado.
Foi grave a acusação do premiê Wen Jiabao contra mim, a acusação de que os protestos foram comandados a partir de Dharamsala. Imediatamente fiz um apelo para que se fizesse uma investigação detalhada. Todos os documentos do governo de exílio são acessíveis ao público, inclusive minhas conversas com os fugitivos tibetanos que chegaram em Dharamsala. É possível investigar tudo isso. Mas meu apelo não foi ouvido. Ninguém veio investigar. Mantemos nosso convite ao governo chinês, para que sejam feitas investigações.
A ignorância sobre a realidade no Tibete leva a mal-entendidos. E também há versões propositalmente falsas. A questão tibetana afeta a imagem da China. A opinião pública internacional está bem informada sobre a situação no Tibete. As tentativas do governo chinês de escamotear a situação no Tibete só prejudicam o próprio governo.
O governo chinês sempre afirmou que forças inimigas no Ocidente instrumentalizam o Dalai Lama. Essa é uma grave acusação contra o Ocidente. De fato, temos muitos adeptos e simpatizantes no Ocidente. Mas nunca abusamos dessas pessoas para mobilizá-las contra a China. Por isso é que se trata de uma acusação especialmente grave. Sempre reiterei que a China é um grande país com uma grande população e uma longa história. A economia do país deve se desenvolver. O país deve ampliar sua influência. Por isso sempre me pronunciei, em todo o mundo, contra um isolamento da China.
Um dos pontos críticos do governo chinês é que ele não tem uma política transparente. Meios de comunicação livres e um governo transparente são muito importantes. Essa é a base da confiança da população no governo. O presidente Hu Jintao introduziu o conceito da "sociedade harmônica". Sou absolutamente a favor da harmonia. Mas a harmonia vem da confiança do povo. Violência e ameaça não podem gerar harmonia. Por isso, numa sociedade humana a confiança é muito importante. Regimes autoritários tentam semear desconfiança entre a população. Trata-se de um método com efeito de curta duração. Sem gerar confiança, a sociedade não pode se estabilizar.
Mesmo entre os tibetanos no exílio, muitos consideram fracassado o "caminho do meio" representado pelo senhor há 20 anos. Como o senhor lida pessoalmente com essa crítica?
A ideia do "caminho do meio" surgiu nos anos 70. Tomamos essa decisão em 1974. No ano de 1951, por ocasião da assinatura do Acordo de 17 Pontos para a Liberação Pacífica do Tibete, o pensamento central era o caminho do meio. Mas tanto entre os tibetanos, como também entre quem os apoiava na Índia e no Ocidente, muitos achavam que o "caminho do meio" era uma exigência moderada demais. Afinal, o Tibete era um país independente na história. E por isso deveríamos reivindicar um Tibete independente. Essa opinião é bastante propagada entre os tibetanos e quem os apoia.
Há muito tempo que praticamos o princípio democrático; por isso é que, entre nós, críticas e opiniões diferentes são bem-vindas. Mao Tse Tung sempre defendeu crítica e autocrítica dentro do partido. O partido depende da crítica interna, como o peixe da água. Sem água, o peixe não pode sobreviver. Essa tradição de crítica e autocrítica não existe mais na China. Mas na nossa comunidade no exílio, começamos a praticar isso.
Se considerarmos todos os aspectos do Tibete, como por exemplo religião, cultura e desenvolvimento econômico, talvez a questão tibetana não se restrinja somente à independência política. É preciso enxergar longe. O Tibete precisa de desenvolvimento moderno; isso é muito importante. Muitos tibetanos também querem o desenvolvimento econômico. O nosso caminho do meio tenta atender a esses interesses comuns em toda a China.
Sempre gosto de mencionar o exemplo da União Europeia. Na Europa houve diversas guerras sangrentas por independência. Mas agora se fundou uma comunidade sobre o fundamento dos interesses comuns. Trata-se de uma decisão condizente com a realidade.
O verdadeiro sentido do caminho do meio é servir ao interesse comum. De forma alguma somente em prol dos tibetanos, de todas as pessoas. Para os tibetanos, isso significa uma melhoria nos âmbitos da religião, da cultura e da proteção ambiental. O fato de pertencer à República Popular da China ajuda o Tibete no desenvolvimento econômico e material. Foi por isso que desenvolvi a ideia do caminho do meio, pois ela serve aos dois lados. A meta do nosso empenho é melhorar a situação no Tibete.
Os acontecimentos do último ano nos mostraram, no entanto, que nossa tentativa fracassou. E por isso que começamos a refletir sobre como prosseguir. Reunimos propostas e convocamos uma grande assembleia extraordinária dos tibetanos. Também nos esforçamos para reunir opiniões no próprio Tibete. Antes do encontro, eu disse ao primeiro-ministro do governo de exílio que a nossa conferência deveria ser democrática. Não devemos fazer como os comunistas, impondo nossa linha de antemão e mandando os delegados simplesmente aprová-la. Não podemos fazer isso de jeito nenhum. Devemos sustentar nossas decisões somente nas opiniões do povo.
Nosso empenho por melhorar a situação no Tibete fracassou; agora o povo deverá decidir o curso das coisas. Durante a conferência houve muitas vozes que se pronunciaram contra o caminho do meio e a favor da independência. Mas a maioria acha que o caminho do meio corresponde ao interesse coletivo e é mais realista. O resultado da discussão foi que a maioria optou pelo caminho do meio.
Depois disso, convocamos em Nova Délhi uma conferência de todos os grupos que apoiam o Tibete no mundo inteiro. Nessa ocasião, o debate também foi bastante controverso. Mas por fim, o grêmio também decidiu apoiar o caminho do meio. É por isso que, apesar de nos confrontarmos com muitas dificuldades, continuamos seguindo o caminho do meio.
No ano passado, encontrei diversos intelectuais, cientistas e especialistas chineses. Tiramos grande proveito deste contato. No dia 6 de agosto, realizaremos um simpósio com diversos chineses, a fim de ouvir suas opiniões e propostas.
Apesar de a China ser um país forte com uma grande população, ela não deixa de ser parte do planeta. O mundo inteiro está em mudança. Essa tendência é irreversível. Temos que aceitar. Não dá para se desenvolver em isolamento.
Antigamente, quando eu ainda estava na China, ouvia falar muito de marxismo, leninismo etc. Hoje ninguém mais ouve falar de marxismo-leninismo. A única coisa que importa é o poder, nada mais. Na época se dizia que os imperalistas americanos praticavam o capitalismo e que, diante do desenvolvimento inevitável da sociedade, o capitalismo estava condenado ao fracasso. Mas esse fracasso aparentemente não ocorreu até agora.
Tudo se reverteu. Antigamente, o que imperava na China era o socialismo; hoje, é o capitalismo. Nesse ponto, a China se adaptou à tendência mundial. A era dos sistemas totalitários e antilibertários está acabando.
Se, nos últimos 60 anos, a China tivesse tido democracia, liberdade, Estado de direito, meios de comunicação livres e uma sociedade transparente, talvez nem houvesse a questão tibetana e agora a questão de Xinjiang. Para o futuro de um país tão grande como a China, o único caminho é provavelmente a democratização. Se a China adotasse o rumo da democracia e da liberdade, estaria de acordo com a tendências mundial.
Quando uma nova geração de intelectuais chineses se manifesta sobre a situação do país, não o faz só por fazer, está realmente refletindo sobre o futuro do país. E eles não querem que o país se desintegre de jeito nenhum. Desejo de coração que o governo comunista não suspeite de antemão que os intelectuais queiram colocar em questão o seu poder, mas apenas se sentar numa mesa e discutir sobre o futuro do país. Seria muito honrado se o partido comunista iniciasse ele mesmo a democratização.
Às vezes, digo meio de brincadeira aos meus amigos chineses: o partido comunista está no poder há 60 anos e com 60 anos é hora de se aposentar. Se ele se aposentasse agora, sairia de cena com honra, orgulho e brilho (risos).
Ao preparar esta entrevista, perguntamos aos nossos ouvintes chineses o que eles gostariam de perguntar ao Dalai Lama. A participação foi grande. Uma das perguntas foi a seguinte: se o Tibete conquistasse a autonomia que o senhor reivindica, o que aconteceria com os chineses da etnia majoritária han que vivem no Tibete? Eles teriam que retornar à China?
Para resumir, a autonomia que reivindico implica que o governo central se ocupe da defesa e da política externa. Questões locais, como cultura, religião, meio ambiente, economia etc. devem ser regradas pelos tibetanos.
Quanto ao Grande Tibete, a autonomia reivindicada por nós não é de natureza política, mas sobretudo religiosa e cultural. Sendo assim, como definir o espaço cultural tibetano? Estamos discutindo justamente esse problema. Nunca dissemos que queremos nos separar da China. O que reivindicamos dentro da República Popular da China é uma autonomia religiosa e cultural.
Qualquer alteração das divisões políticas também tem que ocorrer dentro dos limites da República Popular da China. No passado, a estipulação dos territórios autônomos dos coreanos e dos mongóis também mudou, por exemplo. Isso mostra que a distribuição de territórios não é imutável.
A proteção e o desenvolvimento da religião e da cultura tibetanas ocorre há mil anos em todo o território dos tibetanos, não apenas em uma parte específica. Não pode ser que a cultura tibetana seja protegida somente em determinadas partes do país e em outras não. A cultura e a religião tibetanas devem ser cultivadas e desenvolvidas como um todo. Os acontecimentos do ano passado não ocorreram apenas nas região autônoma do Tibete. Os tibetanos em Qinghai, Sichuan ou Yunnan também exigiram a proteção de sua cultura e autonomia.
A autonomia é um desejo comum de todo o povo tibetano e não apenas de uma parte. Sempre dissemos que somos defensores do povo tibetano. Dentro do Tibete, a situação dos tibetanos é muito difícil. Eles têm pouco espaço e não têm possibilidade de expressar seus desejos. É por isso que falamos como representantes de todos os tibetanos. Não podemos ignorar uma parte deles, não podemos fragmentar o Tibete e só falar por uma parte, senão ficaríamos com a consciência pesada em relação aos outros.
O último Panchen Lama também expressou o desejo de que todos os tibetanos adquiram autonomia cultural e religiosa. Em 1956, o próprio Marechal Chen Yi favorecia esse desejo! A autonomia que reivindicamos é apenas de natureza cultural e religiosa. Não há motivo algum de apreensão.
Quanto aos chineses no Tibete, aqueles que já vivem na região há mais de cem anos continuam sendo bem-vindos mesmo no caso de uma autonomia. Ninguém vai proceder contra eles. Afinal, eles constituem uma parte do Tibete.
O que nos preocupa é que, se adquirirmos autonomia, deverá ser a autonomia dos tibetanos. Se os han constituírem a maioria, isso é inaceitável para nós. Ser minoria no próprio país não representa uma autêntica autonomia.
A China defende seu domínio sobre o Tibete com três argumentos. Primeiro, com o argumento histórico de que o Tibete sempre pertenceu à China desde o domínio mongólio; segundo, com o argumento da libertação, segundo o qual o Tibete vivia até o século 20 sob um regime feudal sombrio, derrubado pelo Exército de libertação chinês com aclamação das massas tibetanas; terceiro, o argumento do desempenho, segundo o qual Pequim investiu muito no Tibete e que a região nunca esteve melhor. Alguns exemplo disto seriam a restauração do Palácio Potala e a construção de uma linha de trem até Lhasa. O que o senhor teria a objetar?
Quanto ao argumento histórico, os ingleses – quando estavam na Índia – também ressaltavam o quanto haviam feito para os indianos, quantas ferrovias tinham construído, etc. A história é muito complicada. Há diferentes versões da história. O governo chinês tem a sua, e os intelectuais chineses, sobretudo os intelectuais independentes, desenvolveram uma outra versão através de uma pesquisa autônoma. Os tibetanos têm a sua versão e os ocidentais também. Por isso, tudo é muito complicado.
Fato é que, entre os 6 milhões de tibetanos, nem um único se denominaria um chinês han. Na língua tibetana, isso está claramente regrado. "Jia" é China, "Bo" é Tibete e "Hor" é a Mongólia. Esses conceitos existem há mais de mil anos. Não se trata de uma invenção recente. O conceito China existe no Tibete há apenas pouco mais de 60 anos; esse, sim, é um conceito novo. Mas não quero brigar por causa de conceitos. História é história, é passado.
Quanto ao argumento do desempenho, como por exemplo a construção da ferrovia no Tibete, havia muita gente cética. Eu foi a favor dessa medida. Quanto ao desempenho de reconstrução após a chamada libertação, o Panchen Lama disse algo importante pouco antes da sua morte: os sofrimentos e dores dos tibetanos pesam bem mais do que aquilo que a China construiu e desenvolveu no Tibete.
Uma investigação independente, livre e aberta seria importante. Seria necessário investigar a história e o desenvolvimento dos últimos 60 anos de forma profissional, justa e aberta. E divulgar o resultado.
Durante muitas viagens e todo o mundo, sempre peço que as pessoas visitem o Tibete. Os estrangeiros devem se informar in loco. Se eles constatarem que 99% dos tibetanos são felizes, isso significa que nossas informações são falsas. Então nos desculparíamos em público por ter propagado informações falsas no passado. Mas se os tibetanos estiverem infelizes, então o governo chinês deveria aceitar essa realidade e adaptar sua política a essa realidade.
Autor: Dai Ying
Revisão: Alexandre Schossler