Negro Cosme: de escravizado a líder dos marginalizados
23 de novembro de 2024Em seu auge, a chamada Revolta da Balaiada chegou a reunir 12 mil pessoas no Maranhão. Quando o movimento começou, em 1938, Cosme Bento das Chagas (1800 ou 1802-1842) estava preso. No ano seguinte, fugido da prisão, ele arregimentou milhares de ex-escravizados, reorganizou o Lagoa Amarela — o maior quilombo da história maranhense, localizado na Fazenda Tocanguira — e se juntou à insurreição, tornando-se um de seus principais líderes.
Conhecido como Negro Cosme, a essa altura ele já era uma figura popular. Desde que havia conseguido sua alforria, no fim dos anos 1820, ele se dedicava a formar quilombos e ajudar escravizados a escapar de seus senhores. Autointitulou-se Dom Cosme Bento das Chagas, Tutor e Imperador da Liberdade Bem-Te-Vi.
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"Fornecia alforrias assinadas por ele ou obrigava proprietários de escravos a fazê-lo. Dava aos ex-escravizados trabalho remunerado nas fazendas. Como alguém que viveu os horrores da escravidão, o Negro Cosme almejava a liberdade dos escravos e agia dentro das possibilidades locais, o que fez dele um grande líder", explica o historiador Yuri Alhadef, pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Defensor da liberdade
Cosme dizia que sua luta era a "guerra da lei da liberdade republicana" e chegou a criar uma organização bastante peculiar em seu quilombo. "A singularidade do Negro Cosme está no fato de ele ser minimamente alfabetizado, algo não comum entre os escravizados", salienta Alhadef. Acreditando na igualdade entre todos, ele entendia que era preciso capacitar seu grupo para que, assim, houvesse força para vencer o sistema escravagista. Em Lagoa Amarela, foi fundada uma escola básica.
"Gosto de pensar que por mais que estejamos falando de um personagem que tem contornos de herói, sua contribuição é muito mais bem entendida se não tão individualizada", pontua o historiador Francisco Phelipe Cunha Paz, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Associação Brasileira de Estudos Africanos. "Dom Cosme parecia ter bastante consciência de formas de governanças tradicionais negro-africanas e dos ideais republicanos de cidadania e liberdade."
Devoto de Nossa Senhora do Rosário, ele também trazia elementos do catolicismo popular em sua ideologia. Costumava dizer que seu movimento era o "partido sagrado dessa irmandade", referindo-se aos que rezavam para a santa.
A Balaiada
A revolta popular e social que teve Cosme como uma das lideranças ocorreu de 1828 a 1841 no Maranhão e foi uma das que abalaram o período monárquico brasileiro. Incomodados com o que consideravam ser uma má gestão do governo local e enfrentando uma grave crise no comércio de algodão, grupos marginalizados se uniram em protesto.
Entre os estopins estiveram os casos de um fabricante de balaios (cestos típicos feitos na região) que havia sido vítima de violência policial e de um vaqueiro que se revoltou com a detenção de seu irmão, que ele considerava injusta.
O movimento teve vários levantes sucessivos e, com o passar do tempo, passou a arregimentar diversos grupos considerados marginalizados na sociedade maranhense, incluindo escravizados e ex-escravizados, lavradores, indígenas, ex-policiais, vaqueiros e camponeses pobres em geral. Foi uma guerra civil.
"O caso da Balaiada mostra o processo de articulação que existia entre os descontentes: escravizados e libertos com outros grupos sociais, como brancos pobres", comenta o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Unicamp.
"Os balaios [participantes da revolta] constituíam um grupo heterogêneo e tinham anseios diversos, com seu espaço próprio de experiência, que os conduziam nas suas ambições e modos de enfrentar as batalhas travadas contra as autoridades locais", acrescenta Alhadef.
"O grupo do Negro Cosme aparece como mais homogêneo por ser constituído por escravos, o que fez com que as autoridades da época tratassem esse grupo como um movimento a parte, como uma 'revolta dos pretos'. O certo é que, mesmo com as diferenças entre os sertanejos balaios e os escravizados, algumas situações unificaram as suas lutas naquele contexto, e esses dois grupos puderam se unir na fase final do movimento", aponta o historiador.
Escravidão como pauta central da revolta
Com o ingresso de Cosme, a Balaiada ganhou não só em número de revoltosos como também em causa: com recorrentes invasões a latifúndios, criando piquetes e provocando a insurreição de escravizados, os fazendeiros ficaram amedrontados; na pauta da ala liderada por Negro Cosme, que chegou a contar com 3 mil pessoas, o fim da escravidão era a tônica.
"Sua causa era sem dúvida coletiva. Os rebeldes se apresentavam como defensores da liberdade", comenta o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS). "Ele pretendia acabar com a escravidão. A pauta dos escravizados foi mote para a deflagração da Balaiada e, ao longo de todo o movimento, essa pauta assumiu centralidade."
Conta-se que ele tinha uma boa visão estratégica, por isso estabeleceu alianças convenientes e conseguiu fazer com que o movimento resistisse a investidas das forças policiais. A cidade maranhense de Caxias chegou a ser cercada e tomada pelo grupo que, de lá, expandiu a revolta em direção ao Piauí.
Medo de um levante negro aos moldes do Haiti
A partir de 1840, o movimento se enfraqueceu. Por um lado porque o Império concedeu anistia aos rebeldes, o que fez com que muitos saíssem das frentes de batalha e retomassem suas vidas. Por outro, pelo comando militar do então coronel Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), mais tarde Duque de Caxias, que conseguiu abafar boa parte dos levantes da região.
Os que ainda não haviam capitulado eram todos parte do grupo de Cosme Bento — a essa altura, cerca de 200 negros. A guerra civil só terminaria em 7 de fevereiro de 1841, quando, após uma longa batalha ocorrida em Mearim (atual Bernardo do Mearim), no interior do Maranhão, ferido, Cosme foi capturado pelas forças legalistas. A maior parte dos que faziam parte de seu grupo morreu em combate.
"Cosme Bento das Chagas e os seus seguidores foram as miras privilegiadas da violência liderada pelo futuro Duque de Caxias, focado na luta contra os revoltosos de procedência cativa", diz Alhadef.
Preso, ele enfrentou um processo de mais de um ano até ser condenado à forca. Foi executado em setembro de 1842, em frente à Cadeia Pública de Itapecuru.
"O fim de Dom Cosme ajuda a entender o que precisava ser sufocado naquele período de um Brasil territorial e demograficamente negro, que já via a escravidão perder suas forças e ideais republicanos emergirem: o risco de um levante negro aos moldes da Revolução do Haiti [ocorrida] no final do século 18 e início do 19", analisa Paz. "Esse temor […] e o medo do que uma rebelião escrava, ou camponesa como a Balaiada, pudesse causar aos interesses políticos e econômicos das elites dará unidade à classe senhorial e garantirá a subcidadania negra no projeto de nação branca no Brasil."