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HistóriaBrasil

Manuel Congo e o maior motim de escravos do Vale do Paraíba

18 de novembro de 2024

Ferreiro mobilizou cerca de 400 escravizados, e parte deles conseguiu criar um quilombo. O líder acabou condenado à forca e executado em praça pública, há 185 anos.

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Gravura mostra punição de escravizados em praça pública
Gravura mostra punição de escravizados em praça pública, semelhante à que foi aplicada a envolvidos na rebelião de Manuel CongoFoto: Arquivo Nacional

Camilo Sapateiro decidiu ir sem autorização da fazenda Freguesia, onde era escravizado, para a fazenda Maravilha, na mesma região de Paty do Alferes, no Rio de Janeiro. Era a noite de 5 de novembro de 1838. O feitor surpreendeu Camilo e não teve dúvidas: matou-o a tiros.

A situação foi o estopim de uma revolta entre os demais escravizados da fazenda. Eles tentaram linchar o feitor. Foram contidos, mas começaram a se organizar para uma fuga. Para tal, se aproveitaram de uma instabilidade política regional.

"O ano de 1838 é sintomático de um momento de fratura dentro da classe senhorial de Vassouras e Paty do Alferes", comenta o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, pesquisador da Biblioteca Nacional e integrante do grupo de pesquisa A Cor da Baixada.

O dono da fazenda, o capitão-mor Manuel Francisco Xavier, estava no centro de uma rixa com oligarcas da região. Alguns escravizados, que trabalhavam próximos a seus senhores, sabiam disso. Eles viviam à espera de um gatilho para uma revolta, e este gatilho foi o assassinato de Camilo.

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O líder da rebelião foi Manuel Congo, que tinha se tornado um dos homens de confiança de Xavier. Era ferreiro, uma habilidade muito valorizada entre escravizados, pois ele podia fazer ferramentas e armas. Descrito como homem forte e habilidoso, geralmente quieto e sério, ele provavelmente adotou o prenome português em homenagem ao seu proprietário. Congo, como era costume, denotava sua nação de origem.

Manuel Congo era tido como astuto. "Teve conhecimento, na própria África, da ilegalidade do tráfico internacional de escravos. De alguma forma que os documentos não aludem, este africano já se relacionava com o universo lusitano atlântico", comenta a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro da Rede de Historiadorxs Negrxs e autora de Entre a Escravidão e a Liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição, entre outros livros.

A fuga

Monteiro Franco explica que a morte de Camilo Sapateiro criou comoção na senzala. "Geralmente a gente imagina a escravidão como a ausência de negociação, a permanente violência", mas o que acontecia no Brasil é que primeiramente os escravizados tentavam negociar. A escravidão era negociação e conflito. Não só conflito", aponta.

O historiador conta que alguns escravizados tentaram argumentar com Xavier que o feitor havia extrapolado os limites, "cometido uma infração dentro da lógica senhorial e deveria ser punido". Como o proprietário não acatou a reclamação, veio a revolta.

Por volta da meia-noite do dia em que Camilo Sapateiro foi morto, um grupo de cerca de 80 escravizados arrombou as portas das senzalas da fazenda Freguesia. Eles invadiram o pátio, chamaram as escravas domésticas que dormiam no sobrado da casa grande. Também foram aos paióis, onde puderam pegar suprimentos, facões e uma garrucha (arma de fogo de cano curto).

Esconderam-se, então, nas matas da fazenda Santa Catarina, que era de outro proprietário. Na noite seguinte, foram até a fazenda Maravilha, também possessão de Xavier. E lá expandiram o motim.

Renderam o feitor e ameaçaram matá-lo — e ele acabou fugindo. Então, abriram as senzalas e convocaram outros escravizados a se juntarem a eles. Arrombaram todos os depósitos e levaram comida, ferramentas e armas. Até porcos conseguiram carregar.

No caminho, passaram pela fazenda Pau Grande, de outro proprietário, e lá também libertaram cativos. A essa altura, o grupo já congregava mais de cem revoltosos.

Quando a notícia se espalhou por outras fazendas, rebeliões começaram a ocorrer em série na região. Todos seguiam em direção à Serra da Taquara, o que indica que havia algum combinado prévio. Calcula-se que cerca de 400 pessoas tenham sido reunidas. Não houve registro de violência contra os brancos.

O ferreiro e o místico

"Era uma luta contra o sistema da escravidão, que pressupunha um processo de liberdade para aqueles escravizados da região do Vale do Paraíba. Mas no fim das contas estava integrado com várias outras ações de fuga desde o período colonial", analisa o historiador Phillippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

"A insurreição quilombola de Manoel Congo e Marianna Crioula foi a maior revolta negra do meio rural brasileiro, causando grande repercussão na corte, a ponto de ter deixado indignados os fazendeiros da província, surpreendidos com o fato de um bando de escravos maltrapilhos desafiar o modelo econômico e social pré-estabelecido pelos donos do poder da época", afirma Santos.

Marianna Crioula era da mesma fazenda. Manuel Congo se juntou a ela e foram aclamados como rei e rainha da comunidade. "Isso ocorreu nesse processo de formação do quilombo", pontua Reis.

Para especialistas, a liderança de Manuel Congo pode ter sido consequência de seu trabalho como ferreiro. "Na lógica centro-africana, a forja é ligada aos deuses. Então ser um ferreiro o colocava em conexão com os espíritos ancestrais, que, para eles, são o que balanceia a vida", explica Monteiro Franco. "Provavelmente a liderança [de Manuel Congo] vinha desde a ocupação na fazenda. Não é trivial que o líder da revolta fosse um africano como ele."

Captura e julgamento

No dia 11 de novembro, 160 homens da Guarda Nacional, sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), mais tarde Duque de Caxias, se embrenharam na mata com a missão de recapturar os fugitivos — de preferência, sem matá-los, pois eram mão de obra importante para seus senhores. Como os escravizados foram abrindo uma picada na mata fechada, foi fácil rastreá-los: em algumas horas, já haviam cercado o grupo.

Nem todos foram recapturados. "Houve repressão, prisão e mortes, mas alguns desses escravizados conseguiram de fato formar um quilombo", afirma Monteiro Franco. 

"[Este é] considerado o maior quilombo do Vale do Paraíba. Mas foi uma experiência efêmera", diz o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS). "Cerca de um mês depois, o quilombo foi debelado pelas forças de repressão."

Dezesseis dentre os líderes foram levados a julgamento. Todos das fazendas de Xavier. Foram condenados a 650 chibatadas cada um, 50 por dia. E obrigados a usar um gonzo de ferro no pescoço por três anos, de acordo com informações trazidas pelo sociólogo Clovis Moura (1925-2003) em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil.

Manuel Congo, apontado como líder do grupo, foi condenado à forca e executado no dia 4 de setembro de 1839, em praça pública na cidade de Vassouras.

"Vítima, como milhões de outros africanos na diáspora, desta experiência de desterritorialização, Manuel Congo foi obrigado a refazer sua vida em cativeiro, frente ao campo de possibilidades que lhe era possível ter acesso, tendo de levar em conta, na conformação de sua experiência e projetos, os limites impostos pelo arranjo social no qual estava inserido", pontua a historiadora Santos.

"Assim, acredito que sua luta limita-se à aquisição da liberdade do seu grupo ou, em última instância, daqueles que como ele eram escravizados ilegalmente por ter sido traficados após a lei de 1831 [que proibia o tráfico internacional de escravos]. Nesse sentido, a vivência de Manuel Congo expressa muito sobre a normalidade da experiência de africanos livres no Brasil", conclui.