Como onda migratória pode influenciar a política espanhola
3 de agosto de 2018Dois meses depois de assumir o cargo, o presidente do governo da Espanha, Pedro Sánchez, enfrenta sua primeira crise política. No fim de julho, imagens dramáticas de centenas de africanos saltando a cerca de fronteira em Ceuta abalaram a opinião pública. Segundo a Associação Espanhola de Guardas Civis, 22 policiais ficaram feridos no assalto, ao fim do qual 602 migrantes conseguiram alcançar o enclave espanhol no Norte da África.
Paralelamente, o número de migrantes que atravessaram o Estreito de Gibraltar em balsas foi acima da média neste verão. O Ministério do Interior da Espanha registra que mais de 22 mil chegaram ao país ilegalmente a partir da África. As temperaturas de verão e o fechamento das rotas para a Europa através da Itália e da Grécia são os principais motores dessa dinâmica.
A crise não poderia ter vindo num momento pior para Sánchez e seu Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Em 27 de julho, o governo sofreu o primeiro golpe sério, quando foi rejeitada pelo Congresso a proposta do partido para o teto de déficit orçamentário. A maioria das legendas que apoiara o voto de desconfiança contra o antecessor Mariano Rajoy se absteve, impondo a primeira derrota a Sánchez.
No entanto, analistas não esperam que as manchetes sobre a migração venham a comprometer a unidade entre o premiê e seus parceiros.
"O governo está numa posição fraca, devido à diversidade dos partidos de que depende para fazer avançar qualquer iniciativa", explicou à DW o politólogo José Fernández-Albertos, do Conselho Superior de Pesquisa Científicas (CSIC). "Ainda assim, não deverá ser difícil negociar esse tópico [política migratória], mesmo que haja guinadas inesperadas."
A jornalista política Cristina Fallaras frisa que maior do que o problema do governo com seus parceiros é o com a oposição, que tentará instrumentalizar politicamente o afluxo migratório. Sánchez terá que fazer uma escolha: "O governo está indeciso se toma uma posição mais dura ou mais suave sobre o tópico, e eu acho que sai perdendo de ambos os modos."
Imagens da mídia suplantam solidariedade
Fernández-Albertos acredita que, no longo prazo, a imigração poderá ser benéfica para a Espanha. No curto, contudo, são as imagens espetaculares produzidas pela mídia que deixam uma impressão na consciência coletiva.
"As pessoas assistem à TV e veem como a ordem pública está sendo perturbada nas praias ou cidades que conhecem. Elas veem policiais sobrecarregados, incapazes de conter algo que não compreendem. Elas gostariam de ver as coisas voltarem a ficar sob controle", comenta. "Embora haja menos gente entrando, a visibilidade midiática do assunto é muito elevada. Isso pode alterar os termos do debate."
Esse fato poderia estar impedindo Madri de adotar uma linha de "braços abertos", como ocorreu com a embarcação humanitária Aquarius em junho, quando, em seguida à recusa da Itália de acolher centenas de refugiados, o governo espanhol concordou em deixar o navio aportar em Valencia.
"O PSOE está ciente de que seu eleitorado, relativamente idoso, tende a desconfiar de políticas de fronteiras abertas. O partido sabe que seus rivais políticos vão usar isso – e já estão usando", ressalva Luis Cornago, analista político independente especializado no populismo de extrema direita.
Batalha inesperada no campo da xenofobia
Enquanto isso, no último domingo (29/07), Pablo Casado, recém-eleito presidente do conservador Partido Popular (PP), o maior de oposição, adotou um posicionamento explicitamente anti-imigração.
Ele escreveu no Twitter que "milhões" de africanos estariam esperando para atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa, e "não pode haver documentos para todos", ressalvando: "Temos que dizê-lo, mesmo que seja politicamente incorreto." Três dias depois, Casado visitou o Sul espanhol, onde foi fotografado apertando as mãos de imigrantes.
O tuíte de Casado foi imediatamente instrumentalizado pelo outro líder direitista importante da Espanha, Albert Rivera, do liberal Ciudadanos. Ele visitou Ceuta na segunda-feira, quando acusou Madri de estar criando um "efeito chamada" para a imigração.
Cornago identifica um sentimento anti-imigração subjacente entre a população, que os partidos de direita, especialmente o PP, possivelmente pretendem explorar. Uma parcela significante dos espanhóis estaria preocupada com a competição crescente por recursos econômicos. "Esse tópico pode ser politizado, e se existe um partido político oferecendo essa narrativa, há chance de que uma parte da população venha a apoiá-lo."
É exatamente isso o que o PP está fazendo, afirma Cornago: "A questão catalã não funcionou bem para eles, parece que o Ciudadanos é quem ganhou essa batalha. Mas os eleitores de Casado são tipicamente mais velhos, uma faixa demográfica mais propensa a ter pontos de vista bitolados sobre a imigração."
Fallaras concorda que a oposição esteja tentando captar votos usando uma narrativa linha-dura inspirada no ministro italiano do Interior, Matteo Salvini. A jornalista vê a manobra de Casado simplesmente como último desdobramento numa cadeia de eventos que remonta ao voto de desconfiança.
"Até aquele dia o PSOE sempre preferira se aliar ao Ciudadanos do que ao esquerdista Podemos e aos periféricos nacionalistas. Mas agora o Ciudadanos está competindo abertamente com o PP pelos votos da direita", diz.
Fallaras também frisa que a ferocidade do debate chegou como uma surpresa: "Ninguém estava esperando uma batalha dessas no campo da xenofobia." E essa coincide com a mobilização de duas outras narrativas ultradireitistas: o neofranquismo e a reação sexista contra o feminismo.
"É uma situação muito perigosa, porque se alguém conseguir de fato votos com essas narrativas, isso vai se transformar num caminho escorregadio: eles não vão parar", afirma.
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