China usa censura e doutrinação para abafar lembrança de massacre
4 de junho de 2014No início de maio passado, alguns intelectuais se reuniram em um apartamento em Pequim. O encontro foi chamado de "seminário privado", e o tema do evento era resumido em dois números: seis-quatro.
Há 25 anos, essa combinação de algarismos provoca pânico nas autoridades da China. É com ela que os chineses se referem ao massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, ocorrido há um quarto de século em 4 de junho de 1989 − no dia 4/6.
"Os participantes não podem esquecer dos eventos nem evitar o assunto", afirmaram os participantes do seminário em um comunicado enviado a jornalistas estrangeiros.
Muitos dos signatários do documento estão agora atrás das grades: o advogado Pu Zhiqiang, a blogueira Liu Di, o escritor cristão Hu Shigen, o filósofo Xu Youyu, entre outros. Pouco antes, a jornalista Gao Yu, que sempre abordou criticamente o massacre, havia desaparecido.
Nos dias seguintes, a lista dos presos foi ficando cada vez mais longa: advogados, jornalistas, cientistas. A maioria permaneceu detida. A polícia pode mantê-los encarcerados por até 30 dias sem uma ordem judicial – ou seja, até a data do aniversário do massacre passar.
Apreensão no governo
Neste ano, o governo está especialmente nervoso. Recentemente correspondentes estrangeiros relataram que receberam pedidos das autoridades para evitar temas "sensíveis" nas próximas semanas. Os participantes do seminário violaram uma regra sagrada na China: não lembrar o dia 4 de junho de 1989.
"É óbvio que esse evento que tem a ver com a questão política mais sensível na China ultrapassa claramente a linha vermelha da lei", comentou o jornal nacionalista Global Times. O comentário, publicado em inglês, foi dirigido ao público internacional. Em jornais chineses, os fatos daquele junho de 1989 sequer são mencionados – nem mesmo quando os autores justificam a sangrenta repressão aos protestos.
Li Peng, que, como primeiro-ministro, foi o principal responsável pelo massacre, escreveu suas memórias em um livro, em que classifica como "necessária" a utilização da força contra a chamada "rebelião contrarrevolucionária. O livro circula há vários anos na internet. Oficialmente, no entanto, sua publicação não foi autorizada.
Os protestos estudantis não fazem parte da história oficial. A combinação de números "seis-quatro" não origina resultado algum nas redes sociais chinesas, assim como as palavras "massacre" ou "paz celestial". Mesmo em algumas famílias o tema é proibido. Os pais não contam nada do ocorrido aos filhos, por medo de que eles possam abrir a boca e gerar problemas à família.
Hoje, existe uma geração inteira de jovens que não sabem absolutamente nada sobre o 4 de junho de 1989. A jornalista americana Louisa Lim acabou de publicar um livro abordando o tema. Ela exibiu a estudantes universitários a famosa fotografia que mostra, um dia após o massacre, um homem parando uma coluna de tanques. A imagem se tornou um símbolo dos protestos ao redor do mundo. Nem mesmo um em cada cinco jovens chineses a quem ela mostrou a foto conhecia a imagem.
"Paixão patriótica das massas"
Logo após o massacre, o Partido Comunista da China decidiu lançar uma campanha de educação para conquistar "as paixões patrióticas das massas para o grande objetivo do socialismo com características chinesas".
É dessa forma que a liderança chinesa denomina a mistura de aparelho estatal leninista e ganância por lucro que tornou o país a segunda maior potência econômica do mundo.
A educação patriótica foi ampliada nas escolas e substituiu os slogans ultrapassados de "luta de classes". Com os Jogos Olímpicos, a China celebrou seu ressurgimento como nação. Com o seu próprio programa espacial, se reafirmou como potência mundial.
No conflito com o Japão em torno de um grupo de ilhas ou na disputa com Taiwan, que considera parte de seu território, Pequim atiça a ira e a lealdade dos jovens chineses. Logo ao tomar posse, o novo presidente, Xi Jinping, deixou claro que se vê nesta tradição. "O sonho chinês" é como ele denomina as ambições de Pequim por uma posição poderosa mundo.
Aumento do aparato de segurança
Censura e doutrinação fazem efeito. Mas o governo não quer confiar apenas na lealdade inculcada em seus cidadãos. Os protestos de 1989 começaram pequenos. O ponto de partida foi o funeral do reformador Hu Yaobang, ex-secretário do Partido Comunista. Dentro de curto espaço de tempo, a cerimônia se transformou num protesto em massa pela democracia e contra a corrupção da elite do regime.
Hoje, as autoridades de segurança registram dezenas de milhares de protestos locais a cada ano. O governo teme que um deles possa vir a se transformar novamente em uma grande revolta. Por isso, desde 1989 o aparato de segurança cresce de forma constante. Os gastos com segurança interna excedem até mesmo aqueles para segurança externa.
"Assim que uma tendência contrarrevolucionária for reconhecida, evitaremos que ela se propague", afirmou certa vez o patriarca Deng Xiaoping. Desde então, esta máxima é passada de geração para geração de líderes chineses.