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EducaçãoBrasil

Casando com a mudança

 Aló Cardoso Ribeiro, coluna "Vozes da Educação", DW Brasil
Ilana Aló Cardoso Ribeiro
22 de dezembro de 2022

A vida pautada em esquemas fixos estagna, estanca, absorve. Há, sim, esperança de uma relação feliz com a mudança, com ou sem estabilidade pelo caminho.

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Estudantes se deslocam em corredores da Universidade de Brasília (UnB)
Foto: Raquel Aviani/UnB

O que você quer ser quando crescer? Essa é uma pergunta recorrente quando a gente chega naquela idade de transição, quando começamos a entender um pouquinho do que é o mundo. Geralmente quando aprendemos a ler, a escrever, aprendemos também as profissões, ou até antes, inclusive quando aprendemos outro idioma, também é um tema recorrente.

Mas afinal, o que você quer ser quando crescer? Ou melhor, o que você quis ser? Você se lembra da sua resposta? Pois bem, eu me lembro da minha: eu quero ser professora. E, lembrar disso é relembrar sonhos, repensar quem sou, fui, serei, e da minha longa jornada para ser quem eu quis ser quando menina. Talvez não tenha chegado nem perto daquela Ilana idealizada pela criança que um dia fui, mas, como toda criança nasce cientista, essa também é a minha história.

Eu sempre fui uma criança mediana, nada brilhante, mas muito criativa, comunicativa, com notas boas e com o ouvido atento e curioso. Criança na década de 90, lembro-me bem que, uma vez brincando na rua da minha cidade do interior aqui do Rio de Janeiro, Rio Bonito, perguntei às senhoras que estavam ali observando seus filhos brincarem também, porque uma delas não havia se casado. No momento minha mãe me repreendeu e não tive resposta sobre a pergunta, só caras muito constrangidas pela indagação daquela criança xereta.

Pensei, seria o casamento algo sobre o que não poderíamos falar? Eu conhecia aquelas senhoras, eram mães das minhas amigas, e sempre, mesmo que elas achassem que não, eu prestava atenção nas histórias de adulto delas.

E era uma reclamação que só sobre casamento, e no fim ninguém se separava por conta de uma tal de estabilidade, palavra muito repetida nessas conversas de gente grande. Aliás, o tema casamento foi corriqueiro na minha infância/adolescência pois me diziam que, com o "gênio" forte que tenho, dificilmente conseguiria marido. E eu acreditei.

Muitos anos se passam e chega aquele momento temido por todos, aquele onde você realmente precisa escolher qual profissão irá seguir – pois, é o momento do vestibular. E contrariando muito as expectativas da minha pequena criança, eu endureci e escolhi uma carreira clássica, fui fazer Direito.

"Suco de decepção" com a carreira jurídica

Engraçado que durante muito tempo acreditei que faria concurso e seria mais uma funcionária pública de qualquer órgão público por aí. Até que vieram os estágios em órgãos públicos, a residência jurídica em um órgão público e o puro suco de decepção. Um trabalho repetitivo, chato, que não me completava. Seria esse o casamento que não se podia falar? Aguentar firmemente em um lugar que não se está feliz apenas pela estabilidade?

Pois bem, como o concurso era temporário, um dia decidi mudar. Então, fui fazer mestrado, sem saber bem o que pesquisar e sem conhecer nada nem ninguém da universidade em questão, a UFF.

Passei, fui estudar, conheci os estudos sobre a América Latina e me apaixonei perdidamente. Era isso! Um mundo novo se abriu e uma nova vida também. Talvez eu não fosse ter, e realmente não tenho, todo o dinheiro que uma carreira do Direito me proporcionaria, mas eu me redescobri, voltei-me à minha criança interior e decidi ser professora.

Mentes mudam mundos

E claro, muita coisa aconteceu a partir daí, não vou dizer para vocês que foi uma fluidez linda e maravilhosa, mas, eu agora tinha um objetivo, que não era apenas pautado na estabilidade. Eu estava, mesmo que utopicamente, animada com a ideia de casar com a mudança, porque ser professora é flertar todos os dias com a possibilidade de mudança de mentes, que por sua vez mudam mundos.

Essa guinada – e talvez obstinação – por mudanças me rendeu um mestrado em Direito Constitucional na UFF, sanduíche com a Universidade Simón Bolívar no Equador, onde passei quatro meses.

Ainda mudada pela mudança que procurava, fui fazer outro mestrado, agora em Ciências Políticas na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, a Flacso (sede Equador), onde morei durante três anos. Inclusive pensei que moraria lá para sempre, mas, acabei trabalhando em outro órgão público por conta da bendita estabilidade. E como essa tal de estabilidade é uma falácia, logo tudo se tornou instável e eu voltei para o Brasil.

Obstinada a voltar ao ponto de partida, o de ser professora, prestei concurso duas vezes para o doutorado, passando na segunda, em segundo lugar, e hoje sou quase doutora em direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ – falta pouco.

E por coincidências dessas da vida, foi essa também a universidade que me fez professora, pois foi lá que fui aprovada em um concurso de professor substituto e me vi, de uma hora para outra, na sala de aula.

Obviamente, foi uma loucura, primeira vez no ensino superior e sem reconhecer quem eu era, me senti pequena naquela grandeza. Demorei para entender que eu realmente merecia estar ali, aquela síndrome de impostora que cisma de aparecer nos momentos de vitória, sabe?

Incertezas fazem parte da nossa construção

Bom, mas eu fui com medo mesmo, mas fui. As incertezas fazem parte da nossa construção. Hoje, continuo professora universitária, pesquisadora e extensionista no ensino privado, mas uma profissional bem mais madura e descontraída, e ainda perseguindo o mesmo objetivo utópico que me move: a mudança.

Com tudo isso eu aprendi que a gente precisa se ver de verdade. E me ver, me reconhecer como a mulher que sou tem sido essencial, porque muito do que a gente é, na vida, na personalidade, a gente mostra no trabalho também.

Aprendi a me ver com os olhos da minha pesquisa, porque eu sou o que eu faço, e o estudo do nosso passado através da teoria decolonial me fez perceber que eu tinha uma colonialidade na minha própria cabeça, literalmente. Eu, uma mulher preta de pele clara alisava meus cabelos desde muito nova, e foi nesse processo de me tornar professora, de conviver com o diferente, que me deparei com a minha ancestralidade, que, misturada a outras raízes que conformam o meu DNA, contribuiu para o meu processo de reconhecimento. Hoje, passada a transição capilar, me deparo com a mulher que transicionei, e gosto dela.

E durante todo esse percurso, de estudar América Latina, morar em outro país, conhecer mais diversidade, cultura, outras religiões e trabalhar teoria decolonial, me fez perceber muita coisa, muitos mundos, muita pluralidade.

Mas, acima de tudo me fez entender que não existe uma só verdade sobre absolutamente nada. Não existe uma só verdade sobre carreira, concurso público, cabelos, docência, mudanças e nem sobre casamento.

Existe, na verdade, a vivência de cada um em descobrir suas próprias verdades sem se ancorar em certezas absolutas, ou conceitos fechados do que determinada coisa deveria ser. Aliás, duvidar das minhas certezas desde sempre me fez ver o quanto eu posso aprender do outro e de mim mesma.

A vida pautada em esquemas fixos, estagna, estanca, absorve. Desconstruir, construir, reconstruir são etapas cíclicas de quem se abre. Aprender a aprender, ensinar e aprender, aprender que se aprende em qualquer lugar, aprender que todo mundo tem um saber independente de título é a chave.

Eu sou quem eu fui e quem eu quero ser numa composição não linear de mim mesma, e isso me faz ter esperança de um casamento feliz com a mudança, podendo ou não encontrar a estabilidade pelo caminho.

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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

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