Carnaval de São Paulo vive seu melhor momento
22 de fevereiro de 2020Em março de 1914, munidas com padeiros e chocalhos, 12 pessoas vestindo camisa verde, calça branca e chapéu de palha saíram fazendo música pelas ruas da Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Era o Camisa Verde, o primeiro cordão carnavalesco da cidade. A partir desta sexta-feira (21/02), cerca de 15 milhões de pessoas ocuparão espaços públicos da capital paulista nos blocos de Carnaval.
Uma vez chamada de "túmulo do samba" pelo carioca Vinícius de Moraes, São Paulo se tornou neste ano o destino mais procurado do país para o período do Carnaval, segundo levantamento do site Decolar. Isso se deve ao Carnaval de rua — em 2019, o movimento dos blocos foi responsável por 91% do impacto econômico da folia, enquanto os desfiles do Sambódromo por 9%, de acordo com estimativa da prefeitura.
O crescimento dos blocos na metrópole começou no final da década de 2000, quando paulistanos inspirados pelo carnaval de rua de outras cidades, como Rio de Janeiro e Olinda, passaram a organizar seus próprios coletivos. O fenômeno, porém, só deslanchou a partir de 2014, quando cerca de 200 grupos desfilaram, praticamente o triplo que o ano anterior.
Essa virada teve um componente cultural, com grupos espontaneamente organizando suas paradas musicais, e um aspecto regulatório. Até 2013, não havia um marco normativo próprio para o Carnaval de rua — quem desejasse sair com um bloco tinha que fazê-lo sem comunicar o poder público, de maneira informal, e correr o risco de ser retirado da rua à força, ou enfrentar uma grande burocracia.
A política pública do Carnaval
No início de 2013, um coletivo de blocos de rua foi à prefeitura, então comandada por Fernando Haddad, pedir que ela facilitasse o desfile e se abstivesse de reprimi-los. "Antes havia uma obstrução operacional do poder público para que a cidade ficasse 'em ordem'. Era uma combinação de burocratização com repressão", afirma à DW Brasil o gestor cultural e pesquisador Guilherme Varella, que foi chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo de 2013 a 2015.
Diante da demanda dos blocos e da ausência de tempo hábil para estabelecer uma nova regulamentação a tempo do Carnaval daquele ano, a gestão municipal deu uma "ordem política" para que os grupos de rua que saíssem não fossem reprimidos, diz Varella, que é membro-fundador do bloco "Saia de chita".
Em 2014, a prefeitura editou um decreto sobre o tema, que estabeleceu o Carnaval de rua como um patrimônio cultural e definiu que os blocos não poderiam usar cordas ou outros meios de segregação do espaço público, além de criar um cadastro único, por meio do qual os grupos informavam a data e o local de suas paradas musicais. Cabia então à prefeitura se planejar para fechar ruas, colocar banheiros químicos, desviar linhas de ônibus, organizar o comércio ambulante e enviar equipes de limpeza após os desfiles.
"Houve uma inversão de lógica. A cidade parou de cancelar os blocos e teve que admiti-los e acolhê-los. Tinha muita gente com vontade de ocupar o espaço público e aprendendo a participar. A cidade correspondeu a essa expectativa e os blocos se multiplicaram", afirma o empresário José Cury, coordenador do Fórum de Blocos de São Paulo e diretor do "Me lembra que eu vou".
Em 2015, foram cerca de 270 blocos, em 2016, cerca de 310, em 2017, cerca de 400, e em 2018, cerca de 450. No ano passado, foram 556 desfiles de 516 grupos autorizados, e neste ano há 678 desfiles aprovados. Os números disponíveis variam pois, apesar de se cadastrarem, alguns blocos não desfilam.
O impacto econômico gerado pelo Carnaval de rua acompanhou a tendência. Segundo estimativas da Prefeitura, em 2016, essa atividade movimentou 320 milhões de reais, em 2017, 350 milhões de reais, em 2018, 590 milhões de reais, e em 2019, 2,2 bilhões de reais, em valores atualizados pelo IPCA.
O perfil do público também se transformou, atraindo mais turistas. Em 2019, cerca de 30% dos foliões não moravam na capital paulista, contra apenas 9% de dois anos antes, segundo pesquisa realizada pela SPTuris.
Tanta movimentação gera transtornos, como ruas bloqueadas e sujeira, e conflitos com parcela dos moradores de bairros por onde passam os desfiles. Na Vila Madalena, na região oeste, que concentra grande número de blocos, um motorista atropelou sete foliões quando tentava atravessar uma área destinada aos blocos no Carnaval de 2014, e no ano seguinte a Polícia Militar usou bombas de efeito moral para dispersar os foliões à noite.
Desafios futuros
O crescimento do Carnaval e as mudanças na gestão municipal — em 2017, João Doria assumiu a prefeitura e, no ano seguinte, Bruno Covas — foram acompanhados de um aumento de exigências para os blocos.
A prefeitura criou um guia, desenvolvido com a participação de Cury, que estabeleceu balizas para os grupos — aqueles que esperam atrair mais de 5 mil pessoas devem contratar bombeiros civis, seguranças e equipes de produção. Acima de 40 mil participantes, é necessário um Plano de Operação e Segurança, sujeito à aprovação da prefeitura.
"Era necessário estabelecer um norte. Não pode ter um bloco que leva mais de 40 mil pessoas e que não se preocupa com a segurança de seus integrantes e dos foliões. Muita gente cresceu e precisava ser lembrada que cresceu", diz Cury.
Varella, porém, alerta para o risco de "reburocratização", e critica o estabelecimento de multas para os blocos que atraem menos de 40 mil foliões e que não cumprirem os requisitos. Na gestão anterior, a penalidade por descumprimento era apenas a proibição de se cadastrar no Carnaval do ano seguinte.
Ambos os especialistas concordam, porém, na crítica aos blocos empresariais, que exploram o caráter livre do Carnaval de rua para montar operações lucrativas.
"Bloco deve ser algo de geração espontânea, mas tem muita gente que se aproveita economicamente e monta bloco para conseguir patrocínio e botar dinheiro no bolso no final", diz Cury.
Ele afirma que, neste ano, alguns produtores culturais inscreveram até seis blocos no processo da prefeitura, para depois sair à busca de patrocínio e então cancelar os que não se viabilizaram economicamente. A prefeitura não proíbe que os grupos tenham lucro, apenas que restrinjam o uso da rua.
Varella acrescenta que os "blocos-empresa", que contratam artistas famosos como Alceu Valença ou o DJ Alok, provocam grande impacto ao atraírem multidões, ganham dinheiro com publicidade e exigem da prefeitura gastos maiores para a adaptação dos serviços públicos, sem oferecer uma contrapartida.
"A tendência é o vetor econômico, que antes era menor que o cultural, crescer, e o aspecto econômico se tornar preponderante. Isso tornará mais difícil os blocos terem uma relação saudável com a prefeitura, que seja baseada na autonomia e na liberdade de expressão cultural", diz.
Raízes históricas
A tendência de institucionalização do Carnaval de rua lembra o mesmo movimento histórico pelo qual passou o samba em São Paulo, que começou pequeno e autônomo e aos poucos ganhou dimensão econômica e se submeteu a um maior controle do poder público.
Após o surgimento do primeiro bloco, em 1914, novos cordões passaram a ser criados, como o Vai-Vai, em 1930, no qual os foliões desfilavam vestidos nas cores branco e preto. Nessa época, os cordões eram formados majoritariamente pela população negra e pobre, que manifestavam suas raízes africanas em sincretismo com as festas do calendário católico, espalhados pelos bairros.
Na década de 1940, rádios e jornais começaram a organizar concursos entre os cordões, que em seguida passaram a incluir mais instrumentos, como violões e sopros, explica Bruno Baronetti em tese de mestrado apresentada em 2013 no departamento de história da Universidade de São Paulo.
Com o crescimento do carnaval, alguns cordões se tornaram escolas de samba — como a Vai-Vai — e entrou em cena o poder público. Em 1968, a prefeitura começa a subsidiar os desfiles e a promover um concurso oficial. O patrocínio, almejado pelos sambistas, se mostra uma faca de dois gumes: por um lado facilita a organização dos desfiles, mas por outro dá ao governo poder de decidir onde e como ocorreriam os desfiles, que passam a ser centralizados na Avenida São João, no centro da cidade.
Os grupos que se mantêm organizados como cordões ou que não conseguem se transformar em escolas de samba têm dificuldades de se manter ativos, e nos anos 1970 praticamente desaparecem. Em 1977, os desfiles das escolas são transferidos para a Avenida Tiradentes, na região norte da cidade, e no ano seguinte começa a ser cobrado ingresso para as arquibancadas montadas ao longo da via.
A partir desse momento, afirma Baronetti, o carnaval "deixa de ser diversão gratuita, que atraía principalmente os menos favorecidos que desfilavam em suas escolas e aqueles que apenas gostavam de assistir aos desfiles, e passa a atrair as classes médias e altas, que compravam um ingresso e exigiam maior comodidade e um espetáculo de qualidade". Em 1980, as arquibancadas construídas na Avenida Tiradentes chegam a acomodar 30 mil pessoas.
Após idas e vindas sobre um projeto para construir um local específico para os desfiles, a prefeitura inaugura em 1991 o Sambódromo, à beira da Marginal do Tietê, que passa a concentrar as apresentações das escolas de samba. O carnaval paulistano segue então basicamente restrito ao Sambódromo por duas décadas, quando começa o renascimento dos blocos de rua.
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