Brasil entre exclusão e cidadania
13 de outubro de 2003"Como viver em um país em que você não consegue ascender socialmente? Isto é que é violência: a impossibilidade de ascendência social", resumiu Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, o romance no qual se basearam Fernando Meirelles e Kátia Lund para rodar um dos filmes brasileiros mais vistos e elogiados na Europa nos últimos anos. A observação de Lins encerrou o 5° Encontro do Grupo de Brasilianistas na Alemanha, que reuniu em Berlim pesquisadores que têm seus focos de estudo centrados no Brasil.
Copo meio cheio ou meio vazio?
O grupo de especialistas esteve a grosso modo dividido entre aqueles que tendem a ver o que um provérbio alemão chama de "copo meio cheio", ou seja, os que visualizam luz no fim do túnel, e aqueles que não enxergam soluções para a problemática social brasileira: a visão de um "copo meio vazio".
Complexos temáticos indo desde os "assentamentos rurais entre a estagnação e o desenvolvimento", passando pelas dicotomias internas do país como "inclusão e exclusão: a relação do Brasil com seu nordeste" até as "desiguladades sociais como fatores determinantes de enfermidades" trouxeram durante três dias as mazelas tupiniquins ao pódio de discussões na capital alemã.
Ilhas da riqueza em mar de pobreza
O universo urbano foi um dos aspectos escolhidos pelos especialistas, que vêem "na estrutura das grandes cidades do país um espelho dos processos de exclusão social da sociedade brasileira", como define a paisagista Andrea Zellhuber, de Munique.
Em análise semelhante, uma fragmentação crescente é vista por Martin Coy, professor do Instituto de Geografia da Universidade de Innsbruck, como resultado de disparidades sociais cada vez mais profundas e do aumento da violência no dia-a-dia das cidades brasileiras.
"Exemplos visíveis desta fragmentação urbana são os condomínios fechados - guetos residenciais dos privilegiados - e os templos de consumo dos shopping centers", que constroem um universo cada vez mais comum de "ilhas da riqueza em um mar de pobreza", comenta Coy.
Cutucando a consciência do Ocidente
Ao analisar os movimentos anti-racistas no Brasil, Sérgio Costa, da Universidade Livre de Berlim, apontou a necessidade de cutucar a consciência do Ocidente, salientando para isso as contradições históricas que permeiam a produção de "discursos pós-nacionais" sobre os direitos humanos.
"A idéia de que os direitos humanos tenham se expandido a partir de um centro ocidental para outras regiões do planeta ignora a interdependência histórica da sociedade moderna. Enquanto a Europa inventava os direitos humanos, ela promovia, ao mesmo tempo, o fim destes através do colonialismo e da escravidão. O processo de descentralização dos direitos humanos em sociedades coloniais não é uma reprodução da modernização européia, mas aconteceu como movimento oposto a ela", observa Costa.
Miséria pós-colonial
Pesquisas empíricas, segundo Costa, mostram que as diparidades sociais no Brasil surgem com freqüência através de hierarquias de classes, que continuam se reproduzindo ad infinitum. "Novas formas de desigualdade são permanentemente construídas", e uma nova ordem cosmopolita só poderá ser alcançada quando todas essas contradições forem trabalhadas.
No ar, fica a pergunta: Como criticar e transformar a própria miséria pós-colonial? Um questionamento que, em nível prático, pode ser complementado pela observação de Paulo Lins: "A minha preocupação não é com quem já está no crime, mas com aqueles excluídos, que vão em suas vidas trabalhar muito, comer mal e morrer cedo".
Memória, registro histórico e identidade
Utilizando o longa Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé, a historiadora Regina Aggio, de Hamburgo, discutiu ainda o significado do registro da própria história para a sociedade brasileira. Como para os moradores da fictícia Javé do filme em questão, também para o povo brasileiro a memória exerce, segundo Aggio, "uma função existencial": a de formar uma identidade coletiva, que pode e deve levar à ação política.
"Registrar o passado significa poder definir o presente", resume Aggio. O que se vê, no entanto, no longa de Eliane Caffé, é a interpretação da história como algo imutável, uma vez que a temida represa é finalmente construída, destruindo o povoado ameaçado, apesar dos esforços dos moradores em recuperar sua história.
Após três dias de discussões, a lição é clara: é necessário lutar para que o destino dos milhões de brasileiros não se iguale àquele da gente de Javé – o de ser devorado involuntariamente pelas águas turvas de represas, que um dia foram chamadas de "progresso" e hoje costumam surgir sob o selo da "globalização".