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Projeto Tijuana

18 de março de 2010

Nos jornais brasileiros, não são raras as notícias sobre oficinas de costura que empregam bolivianos em forma de trabalho escravo. Verdade ou exagero, a colônia boliviana cresce na maior metrópole latino-americana.

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Imigrantes bolivianos encontram-se regularmente na Praça KantutaFoto: DW

Em alguns trabalhos acadêmicos sobre o assunto, chega-se a falar de "senzalas bolivianas", numa referência a oficinas de costura, onde os imigrantes daquele país ganham por hora e por isso se autoescravizam em jornadas absurdas de trabalho e condições desumanas de moradia. Além do medo de serem descobertos, quando vivem ilegalmente no Brasil.

"Como em todo lugar do mundo, os que não têm documento são explorados. Isso acontece em qualquer lugar e aqui é a mesma coisa. Nem sempre no ramo da costura, mas também em outros setores, como nas oficinas mecânicas, por exemplo. Uma empresa formal não vai se arriscar a contratar um clandestino, o que faz com que, quando eles conseguem trabalho, aceitam salários muito mais baixos do que o normal", diz Carlos Sotto, há 39 anos no Brasil e um dos idealizadores da feira da Praça Kantuta.

Nesta feira, os bolivianos de São Paulo se reúnem aos domingos para jogar futebol, degustar comidas originárias de seu país, cantar, dançar e encontrar amigos. Há de tudo no local, desde oferta de roupas a cabeleireiros ou parquinho infantil. Segundo Sotto, "continua chegando uma média de três a cinco ônibus cheios de bolivianos por dia a São Paulo. A colônia atualmente é a que mais cresce na cidade", diz ele em frente à sua barraca de salteñas na Praça Kantuta.

Ausência de guetos

Estimativas extraoficiais, como a citada em texto publicado pelos pesquisadores Renato Cymbalista e Iara Rolnik Xavier, falam de 100 mil bolivianos vivendo na cidade, em sua maioria jovens, de baixa escolaridade, empregados na indústria do vestuário. Há fontes que chegam a mencionar um total de 200 mil.

Bolivianische Spezialitäten in São Paulo
Especialidades bolivianas em São PauloFoto: DW

Se no início os bolivianos estiveram pouco presentes no espaço público, isso se deu em função do esquema de moradia a eles oferecido, via de regra com hospedagem nas próprias oficinas de costura, onde trabalham e moram ao mesmo tempo. Como costumam ganhar por hora, a tendência é de jornadas exorbitantes de trabalho, em busca de salários melhores.

Embora concentrados em alguns bairros da cidade, os bolivianos não formam enclaves étnicos ou guetos como em metrópoles europeias. E raramente ficam desempregados, contrastando desta forma mais uma vez com as minorias imigrantes de grandes cidades como Londres ou Paris.

Perfil mudou ao longo dos anos

Os primeiros bolivianos a migrarem para o Brasil eram via de regra estudantes, que se deslocaram para São Paulo ainda nos anos 1950, dentro de programas de intercâmbio acadêmico entre o Brasil e a Bolívia. A partir da década de 1970, o perfil desse migrante mudou.

"Para trabalhar nesse setor de costura, as pessoas que chegam hoje a São Paulo vêm do departamento de La Paz, da região andina, urbana. E principalmente da cidade-subúrbio El Alto. Ou seja, temos que pensar essa migração em termos urbanos e não de um migrante que vem do meio rural, campesino, e é facilmente explorado pelos agentes da cidade", explica o geógrafo Sylvain Souchaud.

O pesquisador francês estuda a migração boliviana para o Brasil, num projeto de parceria entre uma instituição francesa de pesquisa e o Núcleo de Estudos da População (NEP) da Universidade de Campinas (Unicamp).

Segundo Souchaud, muitos desses imigrantes bolivianos permanecem apenas por pouco tempo no Brasil, tendo sempre em vista um retorno ao país de origem. "Eles costumam ficar um ou dois anos e acabam voltando para El Alto, onde a família ficou.

As relações sociais, quando eles estão no Brasil, não são a prioridade deles. A meta é trabalhar, juntar dinheiro durante uma temporada, montar um projeto – comprar um casa, financiar os estudos – e voltar. Tem muito movimento, muitos vão e voltam", diz o pesquisador.

Fenômeno novo

Geograf Sylvain Souchaud
Sylvain SouchaudFoto: DW

Para o Brasil, essa migração recente é um fato praticamente inusitado. Embora país de imigrantes, as últimas levas de imigração em massa já estão há muito enterradas no imaginário brasileiro. Essa tendência recente reflete, segundo Souchaud, a nova posição geopolítica assumida pelo Brasil na América Latina.

"O papel do Brasil na região está crescendo cada vez mais. O Brasil não era um país de imigração muito importante para os vizinhos, ao contrário da Argentina, que assumia no passado esse papel de polo migratório regional. Agora o Brasil está assumindo essa função. Isso engloba vários aspectos: a posição do país na região, a forma como ele se autodefine, as relações que tem com os vizinhos e um conhecimento melhor destes vizinhos", ressalta o geógrafo.

Desconhecimento da região

Conhecer bem os vizinhos não costuma ser algo normal num país das dimensões do Brasil, onde não raro se diz "na América Latina" quando se quer falar dos países de língua espanhola, como se o próprio Brasil não estivesse incluído dentro desta denominação geográfica.

"A dificuldade para propor esse tema da migração regional no Brasil, como professor, foi grande. Não são muitos os alunos que querem estudar os países vizinhos. O interesse continua sendo o imigrante europeu. Não há uma curiosidade muito forte em relação aos países vizinhos. Isso está mudando muito lentamente", afirma Souchaud.

Mas se os brasileiros conhecem pouco a Bolívia, a recíproca também é verdadeira, diz o estudioso francês que já viveu vários anos em ambos os países. O surgimento da população boliviana em São Paulo, diz ele, "questiona um pouco a identidade brasileira. Os brasileiros, principalmente do Sudeste, se definem através de uma migração europeia. Essa migração andina indígena muda um pouco o perfil migratório do Brasil. E consequentemente pode mudar a identidade do país a longo prazo", aposta Souchaud.

Com a ajuda do Estado brasileiro, contudo, os bolivianos, via de regra, não contam. "A única ajuda que veio foi a de dar anistia aos ilegais", conta Carlos Sotto, ao lembrar que "se o Estado for ajudar os clandestinos no Brasil, teria que ajudar coreanos, angolanos, bolivianos, equatorianos. E o governo não tem dinheiro nem para ajudar brasileiros", diz resignado o boliviano que vive há quase 40 anos em São Paulo.

Autora: Soraia Vilela

Revisão: Roselaine Wandscheer