Bibliothek: Língua, literatura e cultura popular na Alemanha
24 de outubro de 2017A língua em comum é um dos elementos mais unificadores de um país. Ainda que, quando um dialeto entre muitos é elevado a língua oficial, é importante manter em mente, isso também significa o declínio de muitos outros. Na Alemanha, um caso em questão é o gradual desaparecimento dos falantes de 'plattdeutsch' (o baixo-alemão) no norte do país.
Por algum tempo, eu cheguei a acreditar, numa tradução canhestra, que 'hochdeutsch' (o alemão-alto) e o alemão-baixo eram assim chamados justamente por sua hierarquia: o "alto” é a língua, o "baixo” é o dialeto. Uma questão de importância. Foi um amigo alemão que me alertou que se tratava simplesmente de uma definição geográfica, assim como dizemos Países Baixos. O alto-alemão poderia ser chamado de alemão-montanhês, e o baixo-alemão poderia ser chamado de alemão-litorâneo.
Escritores e compositores, aqueles que trabalham com a língua, têm um papel bastante definidor na relação de seus concidadãos com sua noção de identidade nacional. Tanto no Brasil como na Alemanha, países com movimentos nacionais iniciados em fins do século 18 que os levaram a se tornarem no século 19 os países que conhecemos hoje, os poetas românticos foram centrais nesse processo.
É por isso que autores como Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller são ainda tão venerados por aqui. Assim como autores brasileiros no século 19 e início do 20 ao criarem seus trabalhos de construção de identidade nacional, Goethe foi também buscar na cultura popular o material para criar uma de suas obras-primas, tão central na cultura literária alemã, em seu ciclo dedicado à história de Fausto e Mefistófeles.
Essa relação complexa de fertilização mútua entre as esferas erudita e popular de um país ocorrem em muitos lugares. O mito popular de Fausto seguiria vivo e seria importante no século 20 no trabalho da família Mann, por exemplo. Quando Heinrich Mann publicou em 1905 seu Professor Unrat, Klaus Mann seu Mephisto em 1936 e Thomas Mann seu Doutor Fausto em 1947, eles ligavam-se a uma tradição popular antiga, que já desaguara na literatura de vários países, seja na obra do inglês Christopher Marlowe com sua Tragicall History of Doctor Faustus (1589) ou do brasileiro João Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas (1956) e do russo Mikhail Bulgákov com O Mestre e Margarida (1967).
Foi da cultura popular germânica que bebeu ainda outro grande autor do século 19, Heinrich Heine, ainda que sua obra seja tão diferente da de seus contemporâneos. Talvez seja por isso que seu Buch der Lieder (Livro das canções) possa ser encontrado em quase toda casa que entro por aqui. Muitas vezes é o único livro de poesia na estante de algumas pessoas que conheço.
Diferentemente do Brasil, não se costuma associar a Alemanha a sua tradição de música popular. O problema é histórico e sociopolítico, já que tudo o que cheira a "nacional" foi manchado pelo uso que os nazistas fizeram desta tradição. Se isso criou a necessidade de uma "tabula rasa", ela possibilitou o surgimento tão criativo da música eletrônica na Alemanha, sem cheiro de passado, dando ao mundo a potência criativa de bandas como Kraftwerk, Tangerine Dream e Can. Mas mesmo a música popular teve seus nomes de força, que conseguiram resgatar algo da tradição em que bebeu Heinrich Heine, em cantores-compositores como Wolf Biermann e Rio Reiser. A Alemanha, tão propagandeada como terra de filósofos e eruditos, tem seus cantores populares de pé no chão também.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.