"Kamala Harris assumiu o controle do partido democrata por meio de suas habilidades de sexo oral”. Esse comentário misógino foi feito por um usuário americano do X (ex-Twitter) na noite de domingo (21/07) pouco depois de o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciar que havia desistido de concorrer à reeleição e endossar Kamala Harris, sua vice, para concorrer em seu lugar.
Desde então, esse tipo de comentário passou a circular em massa nas redes sociais. Kamala é chamada por odiadores de "Blow Job Harris”, algo como "Boquete Harris” e outras ofensas misóginas horríveis.
Vale lembrar que Kamala ainda não é, até o fechamento desta coluna, a candidata oficial. Seu nome recebeu o endosso, além de Biden, de democratas poderosos como Bill e Hillary Clinton. A chance de que ela seja a indicada é alta. Mas de fato isso só deve ser oficialmente divulgado na convenção do partido, em agosto.
Mas só o fato de uma mulher negra ser a favorita para a vaga que vai concorrer contra o radical de direita Donald Trump já foi o suficiente para que uma tempestade de misoginia e racismo fosse despejada nas redes sociais. Kamala é chamada pelos haters de vadia, de louca e "retardada” (sic).
Esse tipo de ataque de ódio não começou no domingo e é incitado pelo próprio Donald Trump. Em um comício em Michigan, no sábado, o candidato radical de direita disse: "Eu a chamo de 'Kamala risonha'. Vocês já viram ela rindo? Ela é maluca. Ela é louca.”. Essa frase de Trump, famoso por sua misoginia, já mostra o tom da campanha de ódio que será lançada se Kamala de fato for candidata: o líder incita, seus súditos e apoiadores seguem na linha do ataque.
O ódio como método
A misoginia contra uma mulher que disputa um espaço de poder, ainda mais contra um famoso "machão”, não é empregada por acaso. Há método. A ideia é desqualificar a candidata usando o repertório sexista que conhecemos bem: falar que é louca, descontrolada, e que só chegou onde chegou por causa de habilidades sexuais e por ter se relacionado com homens poderosos.
Então, não é por acaso que, desde domingo, apoiadores de Trump vêm compartilhando no X uma mensagem que diz que Kamala só conquistou poder porque foi "amante de um famoso político democrata, um homem muito mais velho e casado”.
Trata-se de Willie Brown, ex-prefeito de São Francisco. A agência de notícias Reuters publicou uma checagem ainda em 2020, quando Harris disputava com Biden a vice-presidência. À época, mensagens desse tipo já circulavam, como ataque contra a candidata. O fato: Kamala Harris realmente namorou Brown na década de 90. Só que ele já estava separado há dez anos e o relacionamento com Kamala nunca foi um segredo. Mas quem liga para a realidade? "Amante”, dizem os haters nas redes.
Ataques fazem parte da disputa política, ainda mais a americana, que costuma ser realmente pesada. Mas tudo fica muito pior quando o alvo é uma mulher. Se for uma mulher negra, então, que é o caso de Kamala, a guerra é suja. A gente tem que se preparar para ver todo o tipo de preconceito sendo dito sem vergonha nos próximos meses.
Não estou falando que Kamala Harris não possa ser criticada. Claro que pode. E deve. Faz parte da democracia. Mas uma coisa é crítica sobre posições e atitudes de uma política. Outra coisa é usar misoginia e racismo para desqualificar uma mulher. Isso não dá para aceitar.
Misoginia até mesmo no atentado contra Trump
A misoginia rola solta no ambiente da política no mundo todo. Mas, nessas eleições, o desprezo às mulheres parece estar mesmo em alta nos EUA.
Em 14 de julho, Donald Trump sofreu um atentado, durante um comício na Pensilvânia, um fato que obviamente deplorável e que precisa ser condenado. Uma vítima e o assassino, um homem filiado ao Partido Republicano, morreram no local.
É absurdo e chocante que uma coisa assim tenha acontecido. Mas o que os republicanos influentes próximos a Trump fizeram depois do ataque? Disseram que a culpa era das…. agentes mulheres do Serviço Secreto, que, segundo eles, não tinham capacidade para proteger o ex-presidente.
Segundo essas pessoas, a inclusão de mais mulheres no Serviço Secreto nos últimos anos teria enfraquecido a capacidade de segurança da agência. No momento do atentado, várias mulheres com óculos e a vestimenta típica do serviço se lançaram para proteger Trump. Sim: se colocaram na linha de tiro, se arriscaram para fazer seu trabalho.
Mas a resposta dos misóginos foi atacar essas mulheres nas redes sociais. "Não deveria haver mulheres no Serviço Secreto. Os agentes devem ser os melhores e nenhum dos melhores é mulher”, escreveu no X o ativista de extrema direita Matt Walsh. Escuta, o assassino era um homem. Mulheres podem trabalhar onde quiserem. Deixem-nas fora disso.
O problema dessas pessoas com mulheres é patológico. E, sim, tudo indica que nós, mulheres, vamos passar muita raiva nos próximos meses.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.