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As dificuldades de tradução entre o alemão e o português

Ricardo Domeneck
16 de janeiro de 2018

É assunto de conversa interminável para qualquer brasileiro vivendo num país de língua alemã, especialmente para um escritor. E talvez a coisa mais difícil de verter seja o tom: o tom de um texto.

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Foto: picture-alliance/R. Fellens

É uma conversa interminável, claro, mas que retorna sempre para qualquer brasileiro vivendo na Alemanha, Áustria ou Suíça, mas especialmente para um escritor. A língua é nosso material de trabalho. É nosso meio. Mas quando se vive em outro país, ela se torna também uma limitação.

Toda arte depende de seu contexto cultural, é certo, mas não se pode negar que uma pintura tem melhores chances na alfândega entre as culturas, quando comparada a um poema ou romance. A posição geopolítica de uma língua também faz diferença.

Um autor de língua inglesa pode ser lido praticamente em qualquer parte do mundo um segundo após terminar de escrever um texto. Para autores em língua portuguesa, a tradução se torna indispensável fora do âmbito lusófono, ainda que se trate de um espaço linguístico amplo, o nosso.

Na semana passada, lá estava eu na cozinha da romancista e poeta alemã Odile Kennel, mais uma vez conversando sobre as delícias e as desgraças para quem traduz entre o alemão e o português. A sra. Odile Kennel entende destas coisas por vários motivos.

Nascida em 1967 numa casa bilíngue - onde se falava diariamente alemão e francês - em Bühl (Baden), na fronteira entre a Alemanha e a França, a alemã vem se dedicando à tradução de autores contemporâneos do Brasil e de Portugal por aqui há anos. Foi ela a grande responsável pela existência de minha antologia poética bilíngue aqui, Körper: ein Handbuch / Corpo: um manual (Verlagshaus Berlin, 2013), além de ter vertido vários outros autores.

Estas dificuldades variam entre gêneros e práticas. Traduzir um documento oficial é muito diferente de traduzir um romance, que por sua vez tem dificuldades distintas da tradução de um poema. Em minha opinião, talvez a coisa mais difícil de verter seja o que eu chamaria aqui de tom. O tom de um texto. Por exemplo, em um texto literário brasileiro, a mescla entre os registros culto e popular pode ter vários efeitos.

Nossos modernistas usaram muito isto, para efeitos satíricos. Basta pensar na Carta pras Icamiabas em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. Ou pensemos neste exemplo: será mais difícil traduzir os poemas tão aparentemente simples de Manuel Bandeira, como aquele do porquinho-da-índia, ou textos mais imagéticos e surreais como os de Murilo Mendes?

Como traduzir a maneira com que Clarice Lispector usa o "é”, do verbo ser, num texto estranho como Água Viva (1973). Quando se trata de poesia, uma das coisas que Odile Kennel sempre menciona é a forma como um texto "engorda” ao passar do português para o alemão, tornando muito difícil manter ritmos e métricas entre as duas línguas. A língua alemã simplesmente usa mais palavras do que o português para exprimir muitas vezes a mesma ideia.

A viagem na outra direção também tem suas dificuldades. No momento, estou trabalhando na tradução do livro Palmström (1911), de Christian Morgenstern, para o português. Christian Morgenstern (1871-1914) já foi chamado de uma espécie de contrapartida satírica para seu contemporâneo Franz Kafka (1883-1924). Os dois satirizam, de certa forma, as mesmas características culturais do espaço linguístico germânico. Mas o burocratismo, em Kafka, assume uma roupagem metafísica. Diante do burocrata, Kafka grita. Diante do mesmo burocrata, Morgenstern gargalha.

Os modernistas brasileiros também satirizaram aspectos parecidos de nossa cultura, se não o burocratismo, então o bacharelismo. Tento encontrar paralelos aí, não apenas para "verter” os textos alemães em português, mas para torná-los compreensíveis. É claro que surgem sempre as dificuldades contextuais.

Em um dos poemas, sobre um salmão que viaja pelo Reno, surgem palavras criadas como 'weißgottwo' ("weiß Gott wo”), que é o nosso 'deussabeonde' (Deus sabe onde), mas aparece também " Wasser-Alm”. Mesmo meus amigos alemães não sabiam o que era isso. Precisei de uma bela pesquisa até descobrir que se trata de um tipo de construção comum nos vales entre os Alpes, ao lado do rio. Provavelmente. Ainda estou em dúvida. E assim vou me divertindo e enlouquecendo entre o português e o alemão.

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Na coluna  Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.

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