Arqueólogos podem ter encontrado túmulo de Cervantes
30 de janeiro de 2015Às portas dos 400 anos da morte do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), há novas esperanças de desvendar um dos grandes mistérios históricos da Europa: o paradeiro dos restos mortais do autor de Dom Quixote.
Ao morrer, Cervantes estava longe do reconhecimento universal de que goza hoje em dia e, modestamente, pediu para ser enterrado no Convento das Trinitárias Descalças, também como expressão de carinho pela ordem religiosa.
Mas as reformas realizadas nos últimos séculos no edifício no centro na capital espanhola criaram problemas para a localização do túmulo. Pois os restos mortais que originalmente jaziam numa pequena capela foram trasladados para a nova igreja.
O passo decisivo para a identificação do repouso final do autor foi dado no último sábado (26/01): durante a prospecção do segundo dos 36 nichos na cripta do convento, os pesquisadores encontraram escombros, areia, vestimentas e ossos, assim como fragmentos de madeira pertencentes a um féretro mal conservado.
A peça-chave é uma placa de madeira em cuja superfície estão gravadas as iniciais "M.C.". No momento, antropólogos e arqueólogos de toda a Espanha analisam os restos ósseos, a fim de determinar se realmente pertencem a Cervantes.
Processo interdisciplinar amplo e custoso
A equipe multidisciplinar foi contratada pela prefeitura de Madri em abril de 2014, com a missão de finalmente localizar os restos mortais do literato. Visando preservar a rotina das monjas em clausura, optou-se por métodos não invasivos, como georradar, termografia e escaneamento tridimensional.
O coordenador dos trabalhos é Francisco Etxeberría, antropólogo forense e professor da Universidade do País Basco, que em sua carreira já participou do exame dos cadáveres de Salvador Allende e Pablo Neruda.
A fase de escavação, busca e análise forense é a última de um processo amplo e custoso. Antes realizou-se o estudo histórico de toda a documentação existente – como registros de obras de construção, atestados de óbito e testamentos – a fim de estabelecer hipóteses de busca.
Na fase de prospecção, empregaram-se georradares para identificar irregularidades do terreno possivelmente indicativas de sepulturas subterrâneas. Localizados os nichos fúnebres da cripta, os pesquisadores introduziram nelas microcâmeras endoscópicas, para examinar seu conteúdo. Só após a constatação da presença de ossos humanos teve início o trabalho arqueológico propriamente dito.
Especialistas pedem cautela
A gratidão especial de Miguel de Cervantes – que, além de escritor, foi soldado – às Trinitárias Descalças deveu-se à intervenção dessa congregação para sua libertação e de seu irmão, Rodrigo, depois de cinco anos de cativeiro em Argel.
Apesar de diversos veículos de imprensa anunciarem uma revelação sensacional, os especialistas pedem cautela. Ainda será necessária uma longa cadeia de análises até se confirmar se parte dos ossos encontrados, pertencentes a diversos indivíduos, está mesmo associada ao caixão com as iniciais "M.C.".
"No momento não se confirma nem se descarta nada", adverte o delegado de Artes, Esporte e Turismo de Madri, Pedro Corral.
Dado que a linha genética dos Cervantes se encerrou há séculos, não haverá como comparar o DNA dos restos ósseos encontrados. Em vez disso, os cientistas procuram características físicas e materiais que ajudem a confirmar a conexão com o novelista e poeta.
Roupas, ferimentos, dentadura
Pouco antes de morrer, em 16 de abril de 1616, Cervantes ingressara na Ordem Terceira Franciscana. Portanto é provável que tenha sido sepultado com o hábito da irmandade. Uma análise dos tecidos encontrados também poderá revelar resíduos que ajudem a determinar a antiguidade e composição dos restos.
À parte as vestimentas, outra pista seguida pela equipe forense são as lesões sabidamente sofridas pelo soldado Cervantes. O perfil procurado é de um homem de cerca de 70 anos, com marcas de estilhaços de metal no osso esterno ou atrofia óssea no braço esquerdo, provocadas por balas recebidas na Batalha de Lepanto, de 1571.
Etxeberría acrescenta que os restos mortais do autor renascentista poderiam apresentar partículas de chumbo procedentes de disparos de espingarda que recebeu. Documentos históricos também comprovam que sofria de artrose, a qual provocou o curvamento de sua coluna dorsal.
Outro indício seria uma dentadura em mal estado. O também diretor do Instituto Anatômico Forense de San Sebastián conta que esse dado é fornecido pelo próprio autor, no prólogo de suas Novelas exemplares: "[...] dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros".