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Aprisionamento em massa fortalece facções criminosas

Nathalia Tavolieri | Malu Delgado
3 de janeiro de 2017

No Brasil, prisões superlotadas estimulam ódio ao sistema e funcionam como uma "faculdade do crime". Para especialistas, políticas de ressocialização efetivas e programas de prevenção à criminalidade são urgentes.

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Presídio Central em Porto Alegre
Déficit de vagas nas penitenciárias brasileiras chega a quase 50%Foto: picture-alliance/dpa

O modelo de organização do sistema prisional brasileiro, cuja população carcerária cresceu 575% em duas décadas e meia, segundo dados oficiais do Ministério da Justiça, e a política de segurança pública nacional produzem efeitos colaterais que ajudam a compreender a rebelião que deixou ao menos 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, encerrada nesta segunda-feira (02/01).

Segundo o cientista político e o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o Brasil vive o paradoxo de apostar no aprisionamento em massa como forma de controlar o crime enquanto as prisões superlotadas fortalecem cada vez mais os "exércitos das gangues prisionais". "Os complexos penitenciários do Brasil servem hoje como um networking, uma faculdade do crime", afirma.

Conforme o último relatório sobre a população carcerária brasileira, atualizado em dezembro de 2014 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial (622.202 presos), sendo superado apenas pelos Estados Unidos, China e Rússia, nesta ordem. O alto índice de prisões provisórias fortalece a tese do encarceramento em massa: do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil, aproximadamente quatro entre dez (41%) foram presas sem terem sido julgadas.

"Os Estados Unidos começaram a reduzir a sua população carcerária e têm discutido a legalização das drogas. E a Rússia e a China têm pensado em como aliviar as prisões", aponta Paes Manso.

Para o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Amazonas, Epitácio Almeida, que participou das negociações do motim do Compaj, é quase impossível que o detento não se contamine com as facções criminosas dentro da prisão. "Quando o indivíduo é preso, ele entra em contato com um governo paralelo, o governo do crime. Vai ter de se submeter a ordens e comandos lá dentro", afirma Almeida. "Os presídios no Brasil são construídos para trancafiar, amontoar pessoas."

Para o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Presidente Prudente, o principal e mais urgente problema do sistema carcerário brasileiro é a superlotação dos presídios, com um déficit de vagas pouco abaixo de 50%. "Há unidades para 600 presos que abrigam três mil. Celas com 50, 60 detentos. É quase humanamente impossível pensar na ressocialização desses indivíduos."

A facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), envolvida na rebelião em Manaus e um dos focos de estudo de Paes Manso, fortaleceu-se exatamente dentro desse modelo. São Paulo, onde o grupo está baseado, tem cerca de 500 presos por 100 mil habitantes.

"O PCC é uma facção que, nos últimos anos, ganhou dinheiro com o tráfico de drogas como nunca tinha acontecido antes, vendendo a partir dos contatos com os presídios. Com esse networking atrás das grades, eles vendem a todos os estados brasileiros e criaram uma grande rede de distribuição varejista de drogas", explica Paes Manso.

O Primeiro Comando passou a controlar fontes atacadistas do Paraguai e da Bolívia e a vender para comércios locais. "Começaram a fazer várias alianças, evitando confrontos com grupos locais, mas nem sempre isso era possível. Isso criou algumas inimizades. A Família do Norte (FDN) e o Primeiro Comando Catarinense, por exemplo, são grupos inimigos do PCC", diz o pesquisador. Além do PCC, a FDN – aliada ao Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro –esteve envolvida na rebelião em Manaus.

O fortalecimento de gangues a partir dos presídios foi observado em outros países, como Honduras e El Salvador, onde novas políticas públicas estão sendo buscadas, exemplifica Paes Manso.

"Juventude entregue à violência"

Outra contradição do sistema prisional brasileiro apontada por Paes Manso é que, com o crescimento das facções, o poder público criou um sistema de monitoramento dos presos no cárcere bastante eficiente. Há cerca de dois anos, segundo o pesquisador, autoridades governamentais e pesquisadores têm ciência de que houve uma ruptura na aliança tácita entre os grupos Comando Vermelho e PCC, considerados os mais bem estruturados no Brasil. Essa aliança entre ambos foi feita por razões estratégicas, para não prejudicar o comércio de drogas. O rompimento foi identificado em grampos telefônicos, nos chamados "salves", os comunicados entre gangues.

"Ironicamente, apesar de serem grupos muito fortes, eles são de certa maneira frágeis porque deixam registros de tudo o que fazem. E tudo isso foi registrado pelas comunidades de inteligências dos estados. O PCC tem 10 mil pessoas, e 80% [de seus membros] estão presos."

De acordo com Gakiya, enquanto os conflitos ficarem limitados às muralhas das prisões, e a violência não se estender para as ruas, a população não sofrerá impactos imediatos da precariedade do sistema carcerário brasileiro. "Mas, uma hora, esses indivíduos vão retornar à sociedade. E vão voltar muito piores", afirma o promotor.

Para Almeida, sem a criação de espaços para oficinas técnicas e cursos profissionalizantes nos presídios, que ofereçam perspectivas de um futuro fora da criminalidade, "a possibilidade de ressocialização é zero".

O governo falha em atender garantias básicas previstas pela legislação brasileira, como de higiene, alimentação e integridade física. Também não há trabalho em todos os presídios nem separação de unidades por idade ou periculosidade, como pede a lei. "O Estado é um descumpridor de leis de execuções penais. Legisla e não cumpre", afirma Almeida. "Enquanto o Estado não tiver políticas de ressocialização efetivas e programas de prevenção à criminalidade, estaremos entregando a juventude à violência."

Investimentos e novo modelo

Investir dinheiro em penitenciárias não é prioridade dos governos neste momento de crise econômica. "Não só para os presídios faltam recursos. Alguns estados não têm dinheiro para pagar vários setores. Imagine [gastar] com presídio", afirma Gakiya. Para o promotor, diante da escassez de recursos, os governantes têm preferido destinar os poucos recursos disponíveis para pagamento de, por exemplo, salários dos policiais e melhorias em escolas públicas – medidas mais populares entre os eleitores, mas que levam a um abandono quase que completo do sistema prisional. "Uma hora, o sistema carcerário entra em colapso. É o que está acontecendo agora."

A atual instabilidade política do Brasil e os sinais de fragilidade das instituições prejudicam o debate sobre um novo modelo de segurança pública, considera Paes Manso. O envolvimento de boa parte da classe política em supostos esquemas de corrupção, sob alvo dos investigadores da Operação Lava Jato, dificulta uma discussão racional sobre a população carcerária. "Hoje, falar de Estado e política pública no Brasil virou uma coisa maluca. O que vamos falar de Estado de Direito com um governo em que boa parte está sendo presa ou é investigada, é réu?", pontua.

"Quem defende repensar esse modelo de autoextermínio, de aprisionamento em massa, não defende os presos nem os criminosos, mas defende que se repense um modelo que atualmente fortalece o crime, cria mais revolta, mais raiva, mais disposição para entrar na vida criminosa", diz o pesquisador. "A vida criminosa depende desse combustível que é o ódio ao sistema. Eles são os nossos jihadistas, que preferem morrer aos 25 anos, mas matando e mandando, a morrer aos 80 anos humilhados e obedecendo."