Ao menos 33 autoridades têm antepassado ligado à escravidão
20 de novembro de 2024Esse texto faz parte do Projeto Escravizadores, uma investigação inédita da Agência Pública. O trabalho foi financiado pelo Pulitzer Center e republicado pela DW.
Ex-presidentes do Brasil, senadores da República e governadores de estados brasileiros. Todos esses importantes cargos têm algo em comum: foram e são ocupados por pessoas que descendem de homens e mulheres que teriam alguma relação com pessoas escravizadas no país.
Essa é a conclusão principal do Projeto Escravizadores, investigação inédita feita pela Agência Pública, e publicada também pela DW, que mapeou os antepassados de mais de cem autoridades brasileiras do Executivo e Legislativo para identificar se havia casos de uso de mão de obra escravizada.
O resultado do mapeamento é que, dos 116 investigados, ao menos 33 teriam antepassados que tiveram relação com pessoas escravizadas. Muitos dos políticos sequer conheciam seus antepassados ou mantêm relação próxima com a sua linhagem.
Dos oito presidentes da República após o fim da ditadura de 1964, metade entra nessa lista: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique.
Dos 81 senadores, 16 – um quinto – também se enquadram nessa situação. São eles: Augusta Brito (PT-CE), Carlos Portinho (PL-RJ), Carlos Viana (Podemos-MG), Cid Ferreira Gomes (PSB-CE), Ciro Nogueira (PP-PI), Efraim Filho (União-PB), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Jayme Campos (União-MT), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Marcos do Val (Podemos-ES), Marcos Pontes (PL-SP), Rogério Marinho (PL-RN), Soraya Thronicke (Podemos-MS), Tereza Cristina (PP-MS) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PP).
Dos 27 governadores, quase metade, 13, também entraram no levantamento: Carlos Brandão Júnior (PSB-MA), Cláudio Castro (PL-RJ), Eduardo Riedel (PSDB-MS), Fátima Bezerra (PT-RN), Gladson Camelli (PP-AC), Helder Barbalho (MDB-PA), João Azevêdo (PSB-PB), Jorginho Mello (PL-SC), Rafael Fonteles (PT-PI), Raquel Lyra (PSDB-PE), Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP).
Escravizados em plantações, casas e no comércio
Os casos encontrados são de antepassados de políticos atuais que teriam usado pessoas escravizadas em fazendas, exploração de minérios, no plantio e colheita de cana-de-açúcar, para produção de algodão e em fazendas de fumo, no Recôncavo Baiano.
Também há casos de pessoas escravizadas que teriam vivido nas casas dos senhores, acompanhando e cuidando de idosos, conforme mencionam testamentos, e outras que viajavam em companhia de seus escravizadores. Foram encontrados também registros de compra a venda de escravizados e até mesmo de aluguel dessas pessoas.
"Não eram só os grandes proprietários de terra que tinham escravizados, mas [também] comerciantes, pessoas com pequenas propriedades e que muitas vezes tinham propriedades de plantio só para consumo próprio ou no máximo para venda local, mas não necessariamente para exportação e que tinham um, dois escravizados ali que faziam esse trabalho", comenta a historiadora e educadora social Joana Rezende.
"Muitas pessoas tinham escravizados que, por exemplo, alugavam para outras pessoas, para outras propriedades [...] Havia essas várias formas de, digamos assim, usar um escravizado, não só para plantação, não só nas lavouras", completa.
Para chegar a essas conclusões, a Pública definiu uma metodologia de investigação com os pesquisadores de genealogia do Núcleo de Estudos Paranaenses da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenados pelo sociólogo e professor Ricardo Oliveira. Segundo o pesquisador, essas estruturas de poder e parentesco são um fenômeno genealógico, de modo que "ocorrem transmissões de heranças, de renda, patrimônio, escolaridade, e este temas são decisivos para entendermos o status quo".
Ele cita que famílias ricas no século 21 são formadas, em boa parte, pelos mesmos grupos familiares ricos do século 20 – uma estrutura originada através de casamentos e alianças no período imperial e no colonial. "Com isso, há um núcleo duro de continuidade social da classe dominante", conclui.
Ao investigar o período da escravidão e a classe dominante tradicional, o pesquisador comenta que a presença no poder de pessoas com antepassados escravizadores está ligada a uma estrutura agrária, com grandes fazendeiros escravistas que surgiram com a distribuição das primeiras sesmarias.
Dívida do Estado brasileiro pela escravidão
A escravidão durou mais de 300 anos no Brasil, e a mão de obra escrava foi amplamente utilizada em todo o território desde as primeiras atividades econômicas, gerando riquezas para os portugueses e, em seguida, para os donos de escravizados nascidos aqui.
Como pontua Danilo Marques, doutor em história e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), existem registros de tráfico de pessoas escravizadas já no primeiro século de colonização do Brasil e, com isso, também histórias da resistência dessas pessoas.
"A gente tem os primeiros navios negreiros datados da década de 1550, o início dos engenhos de açúcar no Nordeste, como destino final desses africanos e africanas que seriam escravizados e escravizadas. E você tem, portanto, as primeiras informações de quilombos já em torno de 1570, na Bahia, uma revolta escrava em Porto Calvo [Alagoas] por volta de 1590, que provavelmente seria o início do Quilombo dos Palmares", comenta.
O doutor em história e professor do Universidade de São Paulo (USP) Alain El Youssef, ressalta que a escravidão não é uma prática que foi criada com o imperialismo das Américas, mas foi aqui que ganhou contornos de uma atividade comercial, que fazia a engrenagem econômica da produção colonial girar, mas também era em si uma fonte de lucro para quem traficava essas pessoas.
"Havia, por exemplo, escravidão na África, como havia escravidão em muitos outros continentes, em muitas outras sociedades. A questão é que essa escravidão não era uma escravidão comercial, como a gente está acostumado a ver no processo de colonização do Brasil, e depois no próprio século 19, quando o Brasil já é um país independente. Ou seja, ninguém escravizava uma pessoa nas sociedades africanas para vendê-la. O que havia, na verdade, era uma escravidão que era resquício, que era fruto de conflitos entre duas ou mais comunidades."
Para a doutora em história e professora de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Valéria Gomes Costa, a escravidão – e a forma como foi abolida, sem compensações ou direitos para os escravizados – deixou uma dívida com os descendentes das pessoas privadas de liberdade. "O estado republicano tem uma dívida imensa e impagável com a população negra. Prometeu e não cumpriu, com a cidadania, com moradia digna, educação, saúde", avalia.
"Boa parte dos documentos que a gente tem nesse período são documentos institucionais, de cartórios, processos legais, legislativos, até mesmo jornais. Estamos falando de um momento em que dificilmente as pessoas escravizadas teriam acesso a produzir esses documentos ou serem representadas como personagens ativos. Muitas vezes, a apreensão que nós temos da vida, da experiência dos escravizados, é mediada por um escrivão, um político, algum representante que não necessariamente colocava aquela pessoa como pessoa, até porque elas não eram vistas dessa forma", pondera a historiadora Joana Rezende.
Tataravô de FHC
Em diversas ocasiões, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso afirmou sua ascendência negra, que teria sido comprovada pela genealogista Marta Maria Amato, falecida em 2020. Segundo o trabalho de Amato, a bisavó paterna do ex-presidente, Joana Antonia da Rosa, seria identificada como uma pessoa mulata, filha miscigenada de uma mãe negra e um pai branco. A mãe de Rosa, Maria Hermenegilda da Conceição, trisavó de FHC, pode ter sido escravizada. Já o pai, um português de posses, foi José Antonio da Rosa.
A árvore familiar de Cardoso também tem outros ramos que não apontam para antepassados negros – antes o contrário.
O tataravô do ex-presidente do Brasil foi o coronel José Manoel da Silva e Oliveira, um brasileiro filho de pai português, nascido por volta de 1771 em Glaura, ou Casa Branca, hoje distrito de Ouro Preto, Minas Gerais
Assim como Cardoso, Oliveira foi um homem de muito poder na política brasileira, com influência nas importantes capitanias de Minas e Goiás, atuando como comandante militar e líder de expedições para encontrar novas minas auríferas nos sertões, similar ao que fizeram os bandeirantes paulistas.
O coronel Oliveira atuou como guarda-mor do arraial do Desemboque – área onde hoje está o município de Sacramento, no Triângulo Mineiro, onde teria havido um antigo quilombo. A função de guarda-mor servia para apaziguar todo tipo de conflito relativo aos trabalhos de mineração, que usava intensivamente mão de obra escrava. Era o cargo mais importante na administração local, com atribuições como conceder licenças, repartir as lavras e até mesmo mandar executar quem não pagasse valores devidos.
O ápice político de Oliveira teria sido sua nomeação a capitão-general e governador do Pará. O cargo era, na prática, responsável por administrar a capitania.
Contudo, o antepassado não teria chegado a ocupar o posto de governador no Pará devido à sua morte esdrúxula, em 1814, próximo à data em que teria ganho o cargo. Os registros indicam que Oliveira engasgou com um osso de frango.
Segundo os registros que reúnem a história da família de FHC, parte do sucesso político do coronel Oliveira foi alcançada graças às suas expedições para encontrar ouro. Com isso, ele foi nomeado governador superintendente-geral das minas de Goiás.
Ele teria partido com um numeroso contingente de pessoas escravizadas em direção à serra das Pitombas, nome dado à formação que hoje integra a Serra do Caiapó, em Caiapônia, município no sudoeste de Goiás. A data da expedição é incerta, mas provavelmente ocorreu entre 1804 e 1814, ano de sua morte.
A expedição de Oliveira acabou custando a vida de muitas dessas pessoas escravizadas, que acabaram morrendo devido a febres, obrigando o que restou do grupo a retroceder. Já para o coronel, apesar do fracasso dessa expedição, a descoberta de minas na região teria sido proveitosa para futuras empreitadas.
A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu até a publicação.
A Pública encontrou registros de que a mãe do coronel Oliveira, Joana Francisca de Paiva, a pentavó do ex-presidente, também teria escravizados.
Genealogia de Collor
As origens do ex-presidente Fernando Collor de Mello passam por tradicionais famílias de Alagoas que marcaram a história política do país, com episódios que envolvem corrupção e até assassinato. Segundo a apuração da Agência Pública, esse passado familiar também estaria relacionado à escravidão e às terras que restaram da destruição do quilombo mais conhecido da história do Brasil: Palmares.
O membro mais notório da família é, provavelmente, o próprio Collor, atualmente condenado a oito anos e dez meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por receber uma propina de R$ 20 milhões para influenciar contratos na BR Distribuidora com a empresa UTC Engenharia, entre 2010 e 2014. A defesa do político nega o crime. Um recurso apresentado pelo ex-presidente foi negado no dia 14 de novembro.
O primeiro presidente brasileiro a perder o cargo por um processo de impeachment após o fim da ditadura de 1964 foi depois eleito senador por Alagoas duas vezes.
Senador foi também o cargo que seu pai, Arnon Afonso de Farias Mello, alcançou. Nascido em 1911 na capital de Alagoas, Maceió, ele foi eleito ao Senado três vezes, entre 1963 e 1983. Na primeira delas, quando estava no extinto Partido Democrata Cristão (PDC), ele protagonizou uma das cenas mais esdrúxulas e trágicas da história da Casa.
Durante uma discussão com o senador Silvestre Péricles (PTB-AL), Arnon disparou e acabou acertando – e matando – outro colega, que nada tinha a ver com a querela: José Kairala (PSD-AC), um suplente que estava no seu último dia de substituição do senador eleito nas urnas. O crime aconteceu em 4 de dezembro de 1963 e Arnon, apesar de brevemente detido, não foi condenado pelo Tribunal do Júri de Brasília após ter alegado legítima defesa e a Justiça entender que se tratou de "crime acidental". Arnon se filiaria à Arena, partido de apoio à ditadura, em 1966.
Collor, Mello e Bittencourt: famílias que se perpetuam na política
A família de Collor se divide em dois ramos de políticos a partir de Arnon, seu pai.
Do lado materno, de onde vem o sobrenome Collor, está o avô Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor, que viveu entre 1890 e 1942. Ex-deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul e ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, ele era descendente de alemães que migraram para o Sul do país. É dessa imigração que surge o sobrenome pelo qual ficou conhecido o ex-presidente: Collor é uma versão brasileira de Köhler.
Já do lado paterno, dos Mello, está a linhagem de políticos alagoanos da qual descende o avô Manoel Afonso de Mello Filho, usineiro que viveu entre 1904 e 1995. Ele era dono de uma propriedade chamada Cachoeirinha, em Rio Largo, próximo a Maceió, onde Arnon nasceu. A informação foi confirmada pelo Instituto Arnon de Mello, entidade ligada a um grupo empresarial que controla diversos veículos de comunicação e que tem como um dos sócios o próprio ex-presidente.
Manoel foi casado com Lúcia de Farias Cardoso, que, por sua vez, também vem de uma linhagem tradicional do estado, a família Bittencourt. É nesse tronco que documentos apontam um histórico relacionado à escravidão.
Mãos negras e indígenas na colheita do algodão
O bisavô de Lúcia e tataravô de Collor foi o coronel João de Farias Bittencourt, que viveu entre 1788 e 1886. A Pública encontrou um registro do jornal A Actualidade, de 16 de janeiro de 1864, no qual ele teria chegado ao posto de chefe do estado-maior do comando superior da guarda nacional dos municípios de Pilar e Atalaia, próximos de Maceió.
O coronel foi dono também do engenho São Miguel, em Atalaia, que teria funcionado com mão de obra de pessoas escravizadas de origem africana e indígenas de aldeias locais. Essa mão de obra também teria sido usada para trabalho de manufatura de algodão.
A identidade das pessoas escravizadas, como em tantos outros documentos históricos, ficou anônima no registro sobre o engenho do coronel Bittencourt.
De acordo com as pesquisas de Diegues, o algodão, junto à cana-de-açúcar, eram as principais fontes da economia de Alagoas nessa época, sendo que o algodão chegou a superar o açúcar em meados do século 19. A mão de obra dos escravizados fazia girar a economia que beneficiava os senhores de engenho de tal forma que a abolição do tráfico no Atlântico, em 1850, deixou os escravizadores preocupados com seus negócios.
Diversos presidentes da província de Alagoas chegaram a falar sobre os "problemas" que o fim do tráfico trouxe à mão de obra para as plantações. Em 1860, o então presidente provincial Pedro Leão Veloso "acentuou a crise advinda com a repentina cessação do tráfico de africanos", acrescentando que "fora da indústria agrícola nenhuma outra fonte de riqueza temos", como relatou Diegues em seu livro. O presidente seguinte, Souza Carvalho, também teria apontado, em 1861, a progressiva "falta de braços escravos como a questão que mais deve preocupar".
A reportagem procurou o ex-presidente, mas não teve resposta até a publicação.
Município erguido ao lado dos escombros de Palmares
Atalaia, onde o antepassado de Collor tinha engenho, não é um município qualquer. A cidade, que hoje tem cerca de 48 mil habitantes, foi erguida próximo à área onde antes ficava o quilombo mais famoso da história do Brasil, o de Palmares.
Há registros de que Palmares já existiria desde o fim do século 16, a partir da fuga de pessoas escravizadas por senhores de engenho na capitania de Pernambuco. Elas encontraram um refúgio nas terras ao longo da Serra da Barriga. O apogeu de Palmares teria ocorrido por volta do final do século seguinte, após a invasão holandesa no Nordeste ter desarticulado os engenhos de açúcar e intensificado a fuga de escravizados.
Após a expulsão dos holandeses, o governo pernambucano intensificou os ataques contra Palmares. Foi sob as armas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo que o estado autônomo de Palmares cairia. Em 20 de novembro de 1695, Zumbi, então líder do quilombo, foi emboscado e morto. A data marca o feriado da Consciência Negra, que se tornaria lei nacional apenas em 2003, mais de 300 anos após o assasinato de Zumbi.
A vila de Atalaia seria, no futuro, governada por outro antepassado do ex-presidente Collor. Segundo o livro Atalaia, último reduto dos palmarinos, de Vandete Pacheco Cavalcante, o capitão Francisco Guilherme Bittencourt, filho do coronel João de Farias (que teria usado mão de obra escrava no seu engenho), foi nomeado o primeiro intendente (espécie de prefeito) de Atalaia, em 1890, após o fim do Império do Brasil, na época da Primeira República. O capitão foi o trisavô de Collor e faleceu em 1914.
Metodologia
A reportagem investigou cerca de 500 documentos, entre registros paroquiais e cartorários, jornais antigos em hemerotecas e arquivos públicos, e trabalhos acadêmicos de diversas universidades brasileiras. Ao todo, foram documentados mais de 200 parentescos.
Para este levantamento, a Pública definiu uma amostra de políticos e autoridades brasileiras que inclui senadores da 57ª Legislatura (2023-2027); governadores em exercício e presidentes desde a redemocratização. A lista total reuniu 116 nomes.
Todos os 33 políticos cujos antepassados teriam relações com a escravidão foram procurados pela Pública e tiveram tempo para avaliar a genealogia e os documentos apresentados e responder à reportagem.
É importante ressaltar que os demais políticos que não entraram no grupo dos 33 podem ter tido familiares com relação com a escravidão. A carência de documentos e a dificuldade de acesso a registros históricos impedem que se levantem, com precisão, todas as relações escravistas da genealogia das autoridades.