Ambiguidade dificulta tradução de Machado, diz tradutor
30 de setembro de 2008DW-WORLD: Por que o senhor está atrasado com a tradução?
Berthold Zilly: Em parte, o atraso se deve ao próprio texto. Ano passado, traduzi Facundo: Civilización y Barbarie, de Domingo Faustino Sarmiento, que é duas vezes mais longo que Memorial de Aires. E levei menos tempo.
Isto em grande parte por causa da ambiguidade do texto do Machado?
A ambiguidade, a falta de definição. Isso é um princípio tanto da visão do mundo como da visão do homem, bem como do estilo, do manejo das palavras e da construção da sintaxe de Machado de Assis. Uma certa falta consciente de definição e clareza. Tudo é um pouco dúbio e vago. Também em termos morais. É difícil saber o que é bom e mau, real e ficção e qual o sentido exato das palavras e frases.
Um lema da obra dele poderia ser Dubito ergo sum. Descartes disse Cogito ergo sum, "penso logo existo". Para Machado vale "duvido, logo existo". Ele duvida de tudo, mas sem ser totalmente relativista. Por isso os pós-modernos gostam tanto dele, ou deveriam gostar. De certa forma, ele é pós-moderno. Ele é contra verdades ontológicas, imutáveis, eternas, determinadas. Mas, ao mesmo tempo, não é totalmente relativista. Ele tem algumas verdades, mas é difícil pesquisá-las na obra dele.
Aí voltamos à questão por que é tão difícil traduzir Machado. Porque há inúmeras frases que podem ser interpretadas dessa ou daquela maneira. E geralmente você se dá conta só quando começa a traduzir.
A tradução é, portanto, muito complicada.
Traduzir é sempre complicado, e Machado de Assis em especial. Ele é notório pelas suas expressões e frases ambíguas. Há pouco, por exemplo, estive refletindo sobre uma frase do livro. O narrador diz: "Já tenho embarcado e desembarcado muitas vezes, devia estar gasto. Pois não estou". O que ele quer dizer com gasto? Acostumado, cansado, insensível, acho que é por aí. Mas não é o sentido normal da palavra, não é o convencional. E ele reiteradamente usa palavras fora do seu sentido convencional. Praticamente a cada duas frases há uma dificuldade semelhante. Não se sabe também 100% o que ele quer dizer, há várias interpretações. E mesmo quando se sabe, manter essa anticonvencionalidade em alemão também não é fácil.
Esse é um grande problema em traduções. O tradutor não tem o direito de ser tão original [quanto o autor]. Se eu escrever de uma forma tão anticonvencional quanto Machado, muitos pensarão que eu fiz uma má tradução, que não entendi alguma coisa.
Na poesia, aceita-se melhor o que não é convencional. Mas na prosa as pessoas acham que tudo dever ser escrito de forma clara e fluente. E se há algo muito fora do normal, as pessoas tendem a pensar que eu não sei bem o alemão.
O conselheiro Aires também usa conscientemente esse estilo diplomático, ele não se expressa sempre de uma forma clara.
Sim, mas às vezes ele usa um estilo bem coloquial. É uma mistura da sua linguagem privada e da linguagem coloquial da época. Às vezes ele é até bem descontraído. Por exemplo quando se refere à Fidélia como "mulher apetitosa". Isso não é exatamente uma expressão de alto nível.
É quando aparece um pouco do que o narrador de fato pensa.
Claro. Por um lado, isso não está de acordo com a etiqueta, com o que é correto, mas por outro... bem, afinal ele também é um ser humano, um homem, e também tem desejos, impulsos. E também malícia. E isso leva a quebras no estilo. E refletir tudo isso na tradução não é fácil.
Até na sua conversa com o diário ele é diplomático.
Sim, ele é diplomático até consigo mesmo. Mas nem sempre. Às vezes ele diz "eu vou confiar uma coisa só a você, papel". Por exemplo, "eu tenho inveja desse casal". Nesse ponto ele certamente está sendo sincero.
A sua dificuldade é manter essa ambiguidade.
Sim, e na maior parte das vezes isso não é possível. As línguas são muito diferentes, o que torna a coisa quase impossível. Cada língua é construída de uma forma diferente. Uma palavra que possui um duplo sentido numa língua não necessariamente o tem na outra. Ou o tem de outra maneira. Essa é uma discussão muito longa na literatura. Os múltiplos sentidos de uma palavra são muito importantes em James Joyce, por exemplo. Todos os grandes literatos se ocuparam com a ambiguidade ou o duplo sentido das palavras em suas línguas.
Qual o tema central do livro?
Essa resposta não é tão fácil. Há vários aspectos. Poderíamos começar pelo título, que coloca um problema de tradução. Memorial é difícil de traduzir para o alemão. A primeira acepção é a de um monumento. Mas acho que antigamente não era assim. Memorial pode ser qualquer objeto que tem um valor de recordação, inclusive um diário. Acho que o primeiro sentido é esse, de um diário. Essa foi a tradução que eu escolhi.
Aires é um nome que não significa nada em alemão. Também não conheço uma associação em português. Por isso propus "Diário da Despedida" [Tagebuch des Abschieds em alemão]. Esse é um tema central da obra: a despedida.
É preciso ver a época em que se passa a história. É um limiar entre as épocas, os anos de 1888 e 1889. O final da escravidão e do Império. E o início de várias obras de modernização no Rio de Janeiro.
No plano particular, a ação de primeiro plano é a vida privada de algumas pessoas: o protagonista, a irmã dele e o casal Aguiar. São todas pessoas entre 50 e 65 anos, uma idade que naquela época era considerada velhice. Estão aos poucos se preparando para se despedir da vida.
O narrador acaba de se despedir da vida profissional. Ele é um diplomata que se despede do mundo e volta ao Brasil, para desfrutar os últimos anos da vida.
Todas essas pessoas têm amizade com um casal jovem, Tristão e Fidélia. Aí entra um outro tema central da obra: a relação entre as gerações, entre jovens e velhos. Os velhos têm uma grande afeição pelos jovens, principalmente os Aguiar. E essa afeição que os velhos têm pela juventude aproxima os dois jovens, faz com que eles se conheçam e se amem. O resultado desse amor dos velhos pelos jovens é que jovens vão embora: outra despedida.
Como o senhor falou, há também a oposição entre velhice e juventude.
Essa palavra é muito importante: oposição. É um livro construído ao longo de diversas oposições. Entre os bairros, por exemplo. Aí se tem a geografia social e, por trás, os contrastes sociais. De um lado os mais abastados, de outro os criados e escravos. São as oposições sociais.
Há também oposições no espaço, entre o Rio e Petrópolis (onde você está acima das atribulações da vida), entre o Brasil e a Europa. Os jovens saem do Brasil para a Europa e os velhos voltam da Europa para o Brasil.
Há também a oposição entre vivos e mortos.
Sim já no começo, no cemitério, quando se diz que a Rita colocou alguns cabelos pretos dela no caixão do marido morto. Aí se diz que esse cabelo guardou a cor escura e o cabelo cá fora envelheceu. No mundo da morte, as coisas permanecem imutáveis. A Rita envelhece, mas o cabelo que está com o morto não envelhece. A oposição entre o mundo dos mortos e dos vivos é um fio condutor da obra.
Com a Fidélia é a mesma coisa. Ela está quase dilacerada entre duas fidelidades: ao marido morto e a Tristão. Mas no romance, as duas fidelidades não se excluem. O segundo amor pode ser considerado uma continuação do primeiro. É quase uma mensagem: a vida tem seus direitos, mas a morte também.
A palavra morrer, por exemplo, aparece muitas vezes, também no sentido metafórico. Morrer de amores, por exemplo. Em alemão não se usa tanto isso. Mas como a relação entre vida e morte é muito importante no livro, procuro manter, na medida do possível, a identidade de certas palavras recorrentes, mesmo que em alemão soe estranho.