América Latina e Europa
18 de abril de 2010
Desde que em 28 de julho de 1977 a Espanha solicitou formalmente, e pela segunda vez em sua história, o ingresso na Comunidade Econômica Europeia (CEE, precursora da União Europeia), passaram-se nove anos até o país passar efetivamente a fazer parte do bloco. Embora os vizinhos europeus reconhecessem que a Espanha era parte indiscutível do continente, as negociações foram árduas. Madri teve de jogar com todas as suas cartas, e uma delas foi a América Latina.
Na época, via-se a Espanha como possível interlocutora com a América Latina, como intérprete cultural, como "ponte" de ligação entre ambos os lados do Atlântico, como "voz" da América Latina nas instituições europeias e "representante" da Europa diante dos países do subcontinente.
Espanha e Portugal passaram a ser membros plenos da CEE em 1º de janeiro de 1986. Neste ano, o diplomata espanhol Carlos Westendorp passou a ocupar em Bruxelas o cargo de embaixador permanente de seu governo para Assuntos Comunitários.
Dez anos mais tarde, Westendorp diria em uma conferência que a Europa havia "descoberto" a América Latina em 1986.
Muito mudou ao longo dos séculos, ao longo dos 30 anos da Espanha como democracia e dos 24 anos como membro da União Europeia (UE), mas ainda hoje paira no ar a pergunta: mesmo 200 anos depois, a Espanha ainda detém o monopólio nas relações entre Europa e América Latina?
"Ponte de quê?"
Para Rafael Grasa, professor de Relações Internacionais da Universidade Autônoma de Barcelona e diretor do Instituto Catalão Internacional pela Paz, e Carlos Malamud, do Real Instituto Elcano de Madri, a resposta à questão sobre o monopólio é "não". Segundo os especialistas, a Espanha não é e nunca foi rota obrigatória para os intercâmbios entre a América Latina e a Europa.
"Essa função de porta-voz não existe na prática, nem formalmente", comenta Malamud. "A ideia de 'ponte' provém do período em que a Espanha negociou seu ingresso na CEE, quando o governo espanhol tentou desempenhar este papel", explica Grasa. "Entretanto, já naquela época, outros países-membros, como a Alemanha, mantinham relações mais estreitas com a América Latina e se perguntavam: Ponte de quê?"
O argumento não serviu, portanto, nas negociações espanholas pela sua entrada na Comunidade. Até o início da década de 1990, a inversão da Espanha em outros mercados – inclusive nos latino-americanos – era baixa, enquanto Alemanha, França, Holanda, Reino Unido e Itália cultivavam seus interesses e haviam se posicionado comodamente na região.
Além disso, com o aumento do comprometimento da Espanha com a Europa, acreditava-se que o país se esqueceria da América Latina. Entretanto, Madri soube, principalmente na última década, explorar de fato a relativa vantagem histórica, caracterizada de "vínculo singular" e "sensibilidade especial".
Com isso, converteu o subcontinente em uma "dimensão natural da política externa da Espanha", como defende o secretário de Estado espanhol para a região ibero-americana, Juan Pablo de Laiglesia. De "lanterninhas" entre os investidores estrangeiros em 1986, os espanhóis passaram, no final dos anos 1990, a superar os Estados Unidos em inversões diretas na região.
"A Espanha não aspira nem jamais pretendeu a função de intérprete entre a União Europeia e a América Latina. Os países latino-americanos são maiores de idade, celebram agora 200 anos de independência e não precisam de intermediadores para se relacionar com a Europa. Contudo, estamos sempre dispostos a empregar o nosso melhor conhecimento e nossos contatos mais estreitos para melhorar o diálogo com a América Latina," sintetiza Laiglesia.
"América Latina não é o hobby dos espanhóis"
"De modo algum eu diria que a Espanha é a voz da América Latina na Europa," diz a diretora geral da Fundação Euroamérica, Asunción Valdés. "Mas é realidade que o ingresso da Espanha e de Portugal na CEE provocou um salto qualitativo na relação entre ambas as regiões, transformando-a de econômica em associação estratégica", complementa. Essa declaração nos remete novamente ao que Westendorp disse em 1996.
Rafael Grasa e Carlos Malamud não concordam. Grasa explica que, "com o final da Guerra Fria, a América Latina se tornou menos atraente para a Europa". "E, se a atenção dada a uma Europa com 15 membros já era pequena", prossegue Malamud, "com 27 membros, ela decaiu ainda mais". Portanto, conforme sua presença econômica foi crescendo no continente latino-americano, a Espanha simplesmente preencheu o vazio político deixado por outros países.
Por fim, "a América Latina deixou de ser a mera questão de prestígio que era para os espanhóis em 1986 e se tornou, principalmente na última década, um tema de verdadeiros interesses", afirma Grasa. Entretanto, para o professor de relações internacionais, isso não confere a Madri nada além da posição mais destacada de mera "interlocutor privilegiado".
Hoje, diferentemente de 20 anos atrás, a América Latina é um elemento real – seja a dimensão "natural" ou não – da política externa espanhola. O conceito de ponte com a Europa já não é mais verbalizado. Contudo, Grasa acha que ainda existe "dentro da União Europeia essa ideia de que a Espanha é uma espécie de defensora dos interesses da região".
Bruxelas deixa para Madri assuntos ligados à América Latina. Para Malamud, "isso não é nada extraordinário", devido à característica divisão de tarefas dentro da União Europeia. "Outros países com maior interesse na África e na Ásia se ocupam mais dessas partes do mundo", conta o especialista. Enquanto o primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, critica o golpe de Estado em Honduras diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, ouve-se a chanceler federal alemã, Angela Merkel, falar dos direitos humanos na China.
"A política externa espanhola não teria credibilidade se na Assembleia Geral [da ONU] a Espanha não se alinhasse com a postura, seja na teoria ou na prática, defendida pela maioria dos Estados latino-americanos. A Europa sabe e entende que a Espanha não pode fazer outra coisa. Além disso, convém à União Europeia e aos Estados Unidos que a Espanha se encarregue dos discursos duros", assinala Grasa.
Para o professor catalão, o título de porta-voz da América Ibérica não passa de uma pretensão espanhola que não condiz com a realidade. Porém, Grasa recorda que "política externa é uma mescla de história com ambições e interesses". Por isso, conclui: "Costumamos dizer que, nessa área, quem souber fazer propaganda de uma função criada para si próprio pode acabar tornando-a real, por mais retórica que pareça no início".
Mais do que ajuda
Norbert Glante conhece a União Europeia e suas relações com a América Latina de perto. O social-democrata alemão é membro do Parlamento Europeu desde 1994 e da Assembleia Parlamentar UE-América Latina (EuroLat) desde 2009. Além disso, passou por diversos organismos encarregados dos contratos com sócios latino-americanos. Segundo ele, acontecem muitas coisas no dia a dia, mas que não geram grandes manchetes.
"Não acredito que o interesse pela América Latina tenha diminuído na Europa. Com a última ampliação do bloco, tivemos que empreender grandes esforços para decidir que colegas formariam os grupos de trabalho do subcontinente porque os postos eram muito concorridos", conta Glante. "Não posso dizer o que acontece no Conselho [Europeu, órgão da UE em que estão representados os chefes de Estado e de governo dos 27 países do bloco] porque, ao contrário do Parlamento, suas sessões são realizadas a portas fechadas. Nos nossos grêmios, porém, todos os países participam de forma igual, também a Espanha", conta.
Para Norbet Glante, os latino-americanos encontrariam o caminho até o Velho Continente mesmo sem a Espanha. "A Europa não mantém relações com a América Latina só porque somos muito bonzinhos, e sim porque há importantes interesses econômicos, os quais seriam ativados com ou sem a ajuda da Espanha", explica. Também o fato de o presidente da EuroLat, José Ignácio Salafranca, ser espanhol não significa nada. "Esse não é um cargo hereditário reservado a determinada nacionalidade", justifica Glante.
"É claro que os contatos, o conhecimento e o interesse que os colegas espanhóis têm na região ajudam", reconhece Glance, "mas não se pode dizer que a América Latina seja o hobby dos espanhóis na Europa".
Autora: Luna Bolívar Manaut (eh)
Revisão: Roselaine Wandscheer