Julgamento de Karadzic
26 de outubro de 2009Os juízes do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPII) adiaram para a terça-feira (27/10) o início do julgamento do ex-líder servo-bósnio Radovan Karadzic, que não se apresentou para a primeira audiência de seu processo. Karadzic, acusado de crimes de guerra e lesa-humanidade durante o conflito na Bósnia (1992-1995), boicota o julgamento com o argumento de que precisa de mais tempo para preparar sua defesa. A primeira audiência do caso foi suspensa meia hora depois da abertura.
Os juízes, além de intimarem o acusado a se apresentar pessoalmente à sala, ordenaram que o julgamento recomece às 14h15 (11h15 de Brasília) da terça-feira, com as primeiras exposições dos promotores, "como estava previsto". O magistrado que preside o caso, Kwon O-gon, lembrou que Karadzic pode apresentar suas argumentações iniciais assim que a promotoria encerrar a sua parte, para a qual dispõe de um total de 300 horas.
A promotora Hildegard Uertz-Retzlaft reclamou da atitude de Karadzic, que "trava" o andamento do processo. Fontes do TPII declararam à agência de notícias Efe que, até o momento, os juízes apenas convocaram Karadzic para a audiência. Não teria sido dada qualquer orientação sobre como proceder, caso o acusado deixe novamente de se apresentar. Inicialmente, Karadzic pedia mais dez meses para preparar sua defesa. Mas, em carta enviada aos juízes na quinta-feira passada, pediu que lhe seja concedido "o tempo médio de preparação para um julgamento, que é de dois anos".
Torturas físicas e psíquicas
A Iugoslávia já deixara de ser uma nação, a Croácia era palco de batalhas, quando o líder sérvio local Radovan Karadzic subia ao púlpito do parlamento da Bósnia-Herzegovina e enviou uma ameaça aos muçulmanos bósnios e aos bósnios-croatas que queriam se libertar do restante do país multinacional dominado por sérvios. "Pensem que assim vocês podem levar a Bósnia-Herzegovina ao inferno, e talvez fazer desaparecer o povo muçulmano. Caso haja guerra aqui, o povo muçulmano não terá como se defender."
Pouco depois, na primavera de 1992, estourou na Bósnia o conflito europeu mais sangrento após a Segunda Guerra Mundial. Mais que 110 mil pessoas morreram, mais que 1 milhão foram temporariamente expulsas de onde moravam. Os sérvios dispararam granadas durante três anos e meio a capital Sarajevo, franco-atiradores também foram empregados. E o ponto alto, antes do fim da guerra, em 1995: a execução de quase 8 mil muçulmanos bósnios no povoado de Srebrenica.
Em diversos campos de concentração, as mulheres eram violentadas em massa e os homens espancados até a morte. Murat Tahirovic, um sobrevivente dos abusos, traz na memória as dores sofridas. "Fui gravemente ferido no peito e na barriga. O ferimento no abdome ficava aberto, os torturadores enfiavam um cassetete dentro dele. Fui massacrado, perdi vários dentes. Fui xingado, torturado psiquicamente, não me deixavam ir ao banheiro. Lavar-se era proibido, de qualquer jeito."
Sem piedade para Radovan Karadzic
Ex-técnico em mineração, Tahirovic tinha pouco mais de 20 anos e era soldado do exército bósnio. Ele foi preso e levado a um campo de prisioneiros próximo à fronteira croata, tendo sido libertado após dois meses. Ainda hoje, enfrenta dores e é perseguido pelas imagens das violências sofridas.
Ele é hoje diretor de uma associação para ex-prisioneiros bósnios de campos de concentração. Quando Murat Tahirovic se lembra do passado, afirma que não tem nenhum rancor de seus torturadores.
"Eles eram na época jovens demais, manipulados pela mídia, viviam sob pressão. Eu os perdoo, de certa forma", afirma, Entretanto, ele ressalva não poder perdoar os que davam as ordens para aqueles atos, e que sabiam dos abusos, especialmente no caso de Radovan Karadzic.
"Ele começou a guerra"
A acusação do TPII contra Karadzic inclui 11 pontos. Diversos veredictos do tribunal em Haia já comprovaram que os crimes ocorreram. O diretor do Centro de Documentação da Guerra, em Sarajevo, Mirsad Tokaca, argumenta que as provas contra Karadzic são tão claras que não pode haver dúvidas sobre a culpa dele nas brutais violações dos direitos humanos dos muçulmanos bósnios e croatas bósnios pelos sérvios da Bósnia.
"Ele começou a guerra", afirma Tokaca. "Karadzic tinha também o apoio de Belgrado e da Sérvia, assim como do regime Milosevic e do exército iugoslavo. Os crimes considerados eventos-chave se passaram em abril e maio, em parte ainda em junho e julho de 1992. Na época, o exército iugoslavo lutava com força armada pelas ideias de Karadzic", acrescentou. Tokaca forneceu à promotoria até mesmo provas pelos crimes na forma de gravações em áudio de Sarajevo.
Radovan Karadzic foi um discípulo político e aliado de guerra de Slobodan Milosevic, o então presidente nacionalista e autoritário da Sérvia. Os promotores do tribunal são da opinião que Milosevic e Karadzic, além de outros políticos e oficiais sérvios, queriam usar a desintegração da Iugoslávia para tomar à força as regiões habitadas por sérvios na Croácia e na Bósnia.
Da poesia à medicina alternativa
Milosevic morreu durante o se próprio processo. Karadzic, tal como ele, também se defenderá e usará o tribunal como palco político, acredita o psiquiatra Senadin Ljubovic, que trata vítimas de guerra bósnias. Karadzic estava convencido de que agia corretamente. "Ele vai dizer até que foi obrigado a ordenar o assassinato de tantas pessoas, dizendo que as avisou antes, mas que elas não quiseram ouvi-lo. Não creio que algum dia vá demonstrar remorso", disse.
Ljubovic foi mentor de Karadzic. Ele introduziu o então jovem estudante no setor de psiquiatria da clínica em Sarajevo. Poeta nas horas vagas, Karadzic chegou à capital da Bósnia, vindo com seus pais das montanhas de Montenegro. Mais tarde, já médico, foi condenado em um processo por apropriação indébita, mas nunca chegou a cumprir pena, por ser colaborador não-oficial do serviço secreto. No início da guerra na Bósnia, o nacionalista foi nomeado presidente dos sérvios.
Após o fim da guerra e o início do inquérito, Karadzic desapareceu e esteve mais que 13 anos fugitivo. Ao ser preso em julho do ano passado, trabalhava como especialista em medicina alternativa na capital sérvia, Belgrado. Desde então, está preso em Haia. Ele se diz inocente dos crimes de homicídio, tortura e expulsão na guerra dos Bálcãs, 15 anos atrás. Segundo juristas, caso condenado, sua pena pode ser de prisão perpétua.
Autor: Filip Slavkovic / Marcio Damasceno
Revisão: Augusto Valente