A viagem pelo único posto fronteiriço entre Rússia e Ucrânia
3 de maio de 2024Todos os dias, ônibus conduzidos por voluntários viajam entre a cidade de Sumy, no nordeste da Ucrânia, e a fronteira com a Rússia. Eles vão buscar ucranianos que decidiram deixar para trás suas casas em território ocupado pelos russos e cruzaram o único posto de fronteira atualmente aberto entre os dois países, localizado entre a vila ucraniana Pokrovka e o vilarejo russo de Kolotilovka.
Desde abril de 2022, esse trajeto é um corredor humanitário pelo qual os ucranianos em regiões controladas por Moscou podem chegar ao território controlado por Kiev.
Há onze pessoas e um cachorro no ônibus que segue para Sumy, na sua maioria mulheres e idosos, mas também há dois adolescentes. Alguns olham cansados pela janela, outros cochilam. Alguns estão viajando há vários dias.
Parte do trajeto é feito por uma "zona cinza" de dois quilômetros de extensão entre Kolotilovka e Pokrovka, que precisa ser atravessada a pé, carregando seus pertences. Como os jornalistas não têm permissão para entrar em Pokrovka, só é possível falar com as pessoas no ônibus para Sumy.
Determinado a rastejar até a fronteira
"Todos foram em frente, mas eu era mais lento", diz o aposentado Viktor, da região de Lugansk, sobre a sua jornada pela "zona cinza". Ao lado dele no ônibus há uma cadeira de rodas dobrada. O homem teve as duas pernas amputadas – uma até a coxa e a outra até o joelho.
Ele deu sua cadeira de rodas à esposa, Lyudmila, para que ela transportasse a bagagem pela "zona cinza", enquanto Viktor seguiria rastejando pelo trecho, com a ajuda de uma plataforma improvisada feita de almofadas e hastes de madeira – mas os dois quilômetros se mostraram muito difíceis. "Assim que cruzei a fronteira, percebi que não conseguiria", diz.
Quando Lyudmila chegou ao posto de controle ucraniano, ela pediu ajuda aos voluntários que têm permissão para entrar na "zona cinza" e que, todos os dias, buscam ucranianos lá, juntamente com a Cruz Vermelha.
Eles encontraram Viktor em uma cadeira de rodas e o ajudaram a chegar ao lado ucraniano. No ônibus para Sumy, o aposentado disse: "O que uma pessoa pretende fazer nem sempre corresponde às suas habilidades. Mas minha vontade era tão forte que simplesmente segui em frente."
"Você se sente como se estivesse entre amigos"
Em 2014, Viktor e Lyudmila deixaram a parte ocupada da região de Lugansk e se mudaram para o vilarejo de Tsaryovka, que ficava na região controlada por Kiev. Eles compraram uma casa, reformaram-na e plantaram um jardim. Viktor, que perdeu seus membros anos atrás devido a uma doença vascular, cuidava da casa. Mas apenas alguns dias após o início da invasão russa de fevereiro de 2022, o vilarejo foi ocupado.
De acordo com o casal, restam apenas alguns moradores pró-ucranianos em Tsaryovka. Os que permanecem fizeram as pazes com os ocupantes. Lyudmila diz que ela e seu marido não querem um passaporte russo. Por isso, afirma, eles não conseguiam mais ser atendidos no hospital local.
Viktor e sua esposa hesitaram por muito tempo antes de fugir, pois sabiam que seria difícil para Viktor. Para ir de uma região controlada por Moscou até a parte da Ucrânia controlada por Kiev, primeiro é preciso viajar pela Rússia até um país europeu. Entretanto, diz Viktor, isso seria muito demorado e caro para eles, e a travessia Kolotilovka-Pokrovka era a única opção para o casal.
As checagens na fronteira foram rápidas. Viktor está feliz e com lágrimas nos olhos: "Só senti tanto carinho assim de minha própria mãe. É como estar entre amigos agora!" Viktor e Lyudmila pretendiam continuar sua jornada até Kiev, onde seus filhos e uma neta nascida há poucos meses os aguardavam.
Perguntas e descanso antes de seguir viagem
Em Pokrovka, na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, as autoridades verificam os documentos e os pertences das pessoas que vêm dos territórios ocupados. "Eles também pesquisam em bancos de dados", diz Roman Tkach, da guarda de fronteira.
Em seguida, o ônibus leva as pessoas a um centro de voluntários em Sumy, onde são entrevistadas pelas autoridades ucranianas e registradas pelos serviços sociais. Lá, elas recebem ajuda com todos os tipos de documentos, um chip de celular com número ucraniano e almoço.
Em seguida, os voluntários levam as pessoas para um abrigo onde elas podem tomar banho, dormir e permanecer por vários dias. Depois, elas podem viajar gratuitamente de trem para Kiev, Poltava, Kharkiv ou Dnipro. E todos já sabem para onde irão em seguida.
"Havia drones e soldados russos por toda parte"
O aposentado Mychajlo, que era motorista de ônibus, quer se juntar à sua filha Anna na cidade de Kharkiv. O homem vem do vilarejo de Tavolzhanka, que fica na parte ocupada da região de Kharkiv. Ele viveu lá por 40 anos, mas sua casa está sob fogo cruzado. "Há drones e soldados russos para onde quer que você olhe. Eles arrastaram tudo para fora das casas e as desmontaram, como portas, revestimentos de piso e carpetes, porque estão construindo abrigos para si mesmos", diz o aposentado, com raiva.
Ele descreve muitos de seus antigos vizinhos como "colaboradores", e diz que muitos deles já se mudaram para a Rússia. Mychajlo enfatiza ter recusado a oferta de receber um passaporte russo.
"Fomos traídos por alguém da aldeia"
Anastasia, de 18 anos, deixou a parte da região de Kherson ocupada pela Rússia junto com seu namorado Petro (nome alterado). Petro completou 18 anos em dezembro e recebeu uma convocação do exército russo em março. "Decidimos fugir porque tinha medo de que ele fosse convocado", diz Anastasia. Ela deixou sua mãe, seu irmão de sete anos e sua avó de 80 anos em casa.
Anastasia encontrou seu pai, que está servindo ao exército ucraniano, em Sumy. Ele havia se alistado em dezembro de 2021 e estava destacado na região de Chernihiv quando a invasão russa em grande escala começou, e sua família em Kherson ficou subitamente sob ocupação russa. Agora ele vê sua filha novamente pela primeira vez em mais de dois anos. Os dois choram e se abraçam por um longo tempo.
"Alguém da aldeia delatou que meu pai era militar", lamenta Anastasia. Os homens, que Anastasia descreve como representantes do serviço secreto russo FSB, vieram e exigiram ver as mensagens trocadas com ele. "Eu as havia deletado há muito tempo e disse que não estava em contato com ele", diz Anastasia, acrescentando que "o FBS" havia pressionado sua família a solicitar passaportes russos. "Eles ameaçaram que, se não tivéssemos passaportes russos em duas semanas, seríamos detidos ou algo mais seria feito conosco. Eles tiraram fotos e nossas impressões digitais e interrogaram minha mãe. Foram muito severos", lembra Anastasia. Ela e seu namorado Petro irão morar com seus avós paternos, que moram na região de Poltava.
Corredor segue aberto apesar do bombardeio
Atualmente, todos os dias, de 20 a 40 pessoas das partes ocupadas das regiões de Donetsk, Lugansk, Kharkiv, Kherson e Zaporizhzhya, bem como da península ucraniana da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, usam o corredor humanitário Kolotilovka-Pokrovka, diz Roman Tkach, da guarda de fronteira ucraniana.
Cruzar a fronteira só é possível durante o dia e somente em uma direção – da Rússia para a Ucrânia – e apenas para cidadãos ucranianos. É necessário ter um passaporte ou outra forma de identificação. Mas mesmo que você não tenha um, os funcionários não podem recusar a entrada de cidadãos ucranianos. "Os cidadãos ucranianos têm o direito constitucional de entrar no território da Ucrânia", diz Tkach. Apesar do atual aumento dos bombardeios na região, o corredor permanece aberto, e ninguém foi ferido nele até o momento.