"Sociedade não quer que venezuelanos sejam bem tratados"
12 de dezembro de 2016Desde que começaram as doações para os venezuelanos, há três meses, as críticas aos integrantes do Grupo da Sopa têm sido diárias. "Venezuelano não merece ajuda porque rouba brasileiro" e "eles vêm para tirar os nossos empregos" foram algumas das reclamações que os moradores de Boa Vista (RR) ouviram após se organizarem para distribuir alimentos, vestimentas e roupas de cama para imigrantes na cidade.
"Está cada vez pior o preconceito. A sociedade não quer que os venezuelanos sejam bem tratados, e isso é um problema político. Por isso também que os governos não se mexem para encontrar soluções", diz a advogada Ana Luciola Franco, de 54 anos, fundadora do grupo.
Segundo os integrantes, que já somam cerca de 60 pessoas, está difícil conseguir doações devido à xenofobia contra os venezuelanos. "As pessoas dizem que a gente tem que ajudar os brasileiros também", conta a advogada Tatiara Cabral, de 27 anos.
O grupo explica que a xenofobia aumentou com a chegada de milhares de venezuelanos, fugindo da crise política e econômica no país. O governo de Roraima estima que 30 mil tenham entrado e permanecido no estado desde 2015.
Em especial, muitos moradores de Boa Vista se incomodam com a presença de imigrantes nos semáforos da cidade, vendendo frutas, água ou limpando vidros de carros. É o caso da manicure Alexandra Jaeger, de 37 anos, que defende fechar a fronteira para barrar os imigrantes. "Já tem muita gente nos semáforos. Isso atrapalha, eles abordam os carros", diz.
A rejeição de moradores de Boa Vista aos trabalhadores dos sinais é tanta que algumas pessoas jogam água, xingam e até tentam atropelar os venezuelanos, que se dizem "humilhados" diariamente.
Muitos roraimenses também reclamam de centenas de indígenas que vivem em terrenos baldios, rodoviárias e feiras de Boa Vista e Pacaraima.
"Você vê muita mãe com criança, indígenas, pedindo esmola. A animosidade dos moradores de Boa Vista é porque antes não tinha pedinte, nem gente nos faróis", justifica a advogada Maria Angélica Barreiros, de 67 anos, do Grupo da Sopa.
Em Pacaraima, as reclamações são as mesmas. "Não é legal, não [a vinda dos venezuelanos]. Aumentou a criminalidade, e a cidade ficou mais sebosa, as crianças fazem cocô na rua", afirma a dona de casa E. P., de 29 anos, que não quis se identificar.
Vítimas da xenofobia
Apesar das ocorrências envolvendo venezuelanos terem aumentado, segundo relatório da Defesa Civil do Estado de Roraima, namaior parte dos casos os imigrantes são vítimas, e não infratores.
Outra queixa de muitos roraimenses é o aumento da prostituição. "Tem muita venezuelana acabando com o casamento de brasileiras. Agora tem até um puteiro em Pacaraima", reclama Jardeliane Brito, de 33 anos.
Há também a ideia recorrente de que os venezuelanos vão roubar os empregos dos brasileiros. "Tem gente que está aqui por necessidade, mas tem ricos também, que estão vindo sem precisar e tiram as nossas oportunidades", afirma a secretaria Elaine Magalhães, de 29 anos.
Em Roraima, é comum encontrar venezuelanos com nível superior vivendo de bicos ou em empregos de pouca qualificação. Eles reclamam que a xenofobia dos brasileiros dificulta a inserção no mercado formal de trabalho.
"Tem muita gente explorando venezuelano, colocando doméstica em casa sem pagar o mínimo", conta o empresário João Mesquita, de 30 anos, do Grupo da Sopa.
Sobrecarga no serviço público
A médica e moradora de Boa Vista Elisabeth Duarte, de 56 anos, não se compadece. "Se fosse uma catástrofe, como no Haiti, tudo bem, mas os venezuelanos estão nessa situação porque querem. Apoiaram o governo, é uma crise política", conclui. Ela aponta outra reclamação comum entre os roraimenses: a sobrecarga dos serviços públicos. O governo estadual decretou, em 7 de dezembro, situação de emergência em Saúde Pública nos municípios de Boa Vista e Pacaraima.
"O SUS não é de graça, nós somos os pagantes. A maternidade onde eu trabalho está explodindo de gente. As pacientes acabam de parir e têm que ficar em uma cadeira de rodas porque não tem leito. Isso é desumano para nós que somos pagantes", afirma.
A visão negativa da imigração venezuelana preocupa as autoridades de Pacaraima, na fronteira, onde a relação entre os dois países é intensa.
"Tem mais de 50 mil brasileiros irregulares na Venezuela, trabalhando nas minas e explorando ouro e diamante. Hoje as pessoas que não conhecem a história dos países acham que o problema é os venezuelanos invadirem Roraima há quatro meses. E 100 anos que a gente ocupa lá?", questiona o prefeito da cidade, Altemir Campos.
Ele reconhece que a imigração sobrecarregou o sistema de saúde público, mas afirma que, um ano atrás, a situação era inversa. A secretária municipal de assistência social de Pacaraima, Socorro dos Santos, confirma: "Nós usávamos raio-x, óculos de graça, dentista, oftalmologista, vários serviços de lá. E eles nunca reclamaram da gente".
Comida para quem precisa
Já no Brasil sim, se reclama muito da presença venezuelana. Mas, mesmo com a reprovação de colegas, muitos roraimenses, como o pessoal do grupo da sopa, continuam ajudando os imigrantes. No final de novembro, a reportagem acompanhou a distribuição de suco e biscoito para cerca de 70 indígenas instalados em uma feira de Boa Vista.
Por volta das 19h, os organizadores entraram com uma caminhonete dentro do espaço e anunciaram: "comida!". Começou um corre-corre: índios vinham de várias direções, com cuias e crianças no colo. Uma gritaria, dezenas de mãos esticadas, e os homens e mulheres do alto da caçamba ordenavam: "fila!, fila!".
O clima era tenso. "Será que vai dar para todo mundo?", os organizadores se questionavam. Em pouco tempo, os pacotes terminaram e os galões de suco secaram. "Acabou, acabou!", gritavam, tentando convencer os que ficaram sem a merenda a irem embora. No final da ação, eles comentavam entre si. "É desesperador, né? A gente sente uma impotência...", desabafou a advogada Tatiara Cabral.
Também nos sinais da Avenida Venezuela, uma das principais de Boa Vista, Flória passa todos os dias com quentinhas, no almoço e no jantar, para entregar aos venezuelanos.
A brasileira, que não quer dizer o nome completo ou para quem trabalha, é uma figura querida por ali. As mulheres passam o braço pelas suas costas, conversam, riem. "Graças a ela, comemos", agradecem. Flória se emociona: "Esses são os filhos que eu ganhei". Quando todos já têm sua quentinha, ela entra no carro. "Deus te abençoe, Flória!", se despedem as mulheres. Ela acena da janela do carro: "Até amanhã".