A revolução das bicicletas
3 de janeiro de 2018Eu não sei se admiro Guaraci Almeida ou se o acho um maluco. São quase oito da manhã quando ele vai para a guerra: afivela o capacete, empurra sua bicicleta para a rua – e começa a pedalar.
De Benfica, bairro no norte do Rio de Janeiro, até o centro da cidade, onde ele trabalha, são dez quilômetros. Guaraci pedala durante 40 minutos. São 40 minutos na defensiva. Contra automóveis acelerando a velocidades alucinantes e buzinas de motoristas de ônibus que o ultrapassam a uma distância de apenas 30 centímetros – a lei brasileira exige pelo menos um metro e meio.
É uma luta contra a infraestrutura deficiente para ciclistas no Rio. Na parte mais longa do trajeto, Guaraci passa pela típica selva de pedra promovida pelo planejamento de transportes brasileiro. Não há ciclovia. Não há nem mesmo uma faixa reservada para ciclistas.
Assim, Guaraci arrisca a própria vida. E, por isso, o considero bem audacioso. Eu também ando muito de bicicleta. Nunca tive carro e, quando ainda morava em Berlim, não possuía nem um vale-transporte mensal para ônibus ou trem, o que é muito comum na Alemanha. Por isso, posso afirmar que sou um ciclista com considerável experiência.
Mas, no Brasil, me transformei num ciclista de fim de semana, que pedala apenas no calçadão das praias ou no Parque Nacional da Tijuca. Já Guaraci usa a bicicleta como meio de transporte. Ele é um guerrilheiro da magrela. E ele é o futuro.
Aos 28 anos, Guaraci faz parte de um pequeno grupo de cicloativistas que lutam por um novo tipo de mobilidade. É que a bicicleta ainda é marginalizada no Brasil. Paradoxalmente, ela seria o melhor remédio para muitas cidades cujos sistemas de trânsito estão prestes a infartar. As condições são ideais: o clima é quente e ensolarado, e o terreno, na maioria das vezes, é plano. Andar de bicicleta é barato, e frequentemente chega-se mais rápido ao destino.
Por isso, cicloativistas organizam manifestações regulares. Um exemplo é o pessoal do Massa Crítica, que pedala ostensivamente pela cidade, geralmente nas últimas sextas-feiras do mês. Outro grupo é o Pedal Sonoro, que organiza pedais com o tema "Música e Conscientização". Ou os Bike Anjos, que dão aulas gratuitas, já que muitos brasileiros não sabem andar de bicicleta.
Mas por que não existe um movimento de massas pelo direito a pedalar? Por que as prefeituras deste país ignoram a bicicleta a cada novo grande projeto? Afinal, estudos atuais mostram que, para cada dólar investido em ciclovias, um município economiza 24 dólares em saúde, sistemas de transporte e combate à poluição.
Guaraci Almeida e outros ativistas acham que isso tem relação com a resistência generalizada do Brasil a ideias novas e progressistas e com a visão conservadora, tacanha e estreita da política por aqui. Hoje em dia, não precisar mais de carro é sinal de qualidade de vida em outras cidades do mundo. Mas, no Rio, os motoristas gritam "sai da rua, viado!" para os ciclistas.
Em São Paulo, o debate em torno da bicicleta se tornou até ideológico. Porque um prefeito de esquerda introduziu várias novas faixas para ciclistas na cidade, representantes da direita xingam ciclistas de "comunistas" que deveriam ir para Cuba. A polarização da sociedade brasileira não poupou nem a bicicleta.
É verdade que a rede de ciclovias no Rio foi ampliada de 150 para 450 km. A cidade queria transmitir uma imagem de modernidade antes dos Jogos Olímpicos de 2016. Mas, como tantas outras vezes, a operação foi apenas estética. É que muitas dessas ciclovias não são ciclovias, mas "vias de pedestres divididas" ou "ruas divididas" com os ciclistas. E que ciclovias são essas, onde se coloca uma lixeira no meio? Ou que passam ao lado de bancas de jornal, correndo-se o risco de atropelar alguém? Acontece no bairro de Laranjeiras, onde a ciclovia é um prato cheio para acidentes.
"Frequentemente, as autoridades municipais pintam o chão de vermelho e chamam o resultado de ciclovia", diz José Lobo, de 55 anos, o mais famoso cicloativista do Rio e fundador da ONG Transporte Ativo. Ele pareceu meio inconformado quando o encontrei. "Os políticos gostam muito de falar da quilometragem de novas ciclovias, mas não se preocupam com a qualidade", afirma.
Para Lobo, a situação é piorada pelo apartheid social brasileiro. Se a rica Zona Sul do Rio foi agraciada com bonitas ciclovias nas quais a elite da cidade se locomove com bicicletas que custam até 4.500 euros, as áreas pobres do oeste e do norte da cidade foram esquecidas. "Mas é lá que a maioria das pessoas usa a bicicleta como meio de transporte", diz Lobo, que conta 600 mil usuários diários. Esse número poderia ser maior se houvesse melhor infraestrutura. Mas Lobo acredita que, infelizmente, os tomadores de decisão ainda não chegaram mentalmente ao século 21.
Esse é um dos motivos pelos quais Lobo está ansioso pela Velo-City, que será realizada no Rio em junho. A conferência espera especialistas e urbanistas do mundo inteiro para discutir sobre diferentes formas de mobilidade por bicicleta. Alguns dias antes, o Rio também sediará a Bicicultura, o maior encontro de cicloativistas do Brasil e cuja última edição, em 2017, teve o tema "A Revolução das Bicicletas".
É uma revolução necessária. O Brasil ainda é uma "autocracia", com poder ilimitado e absoluto para o automóvel.
Por isso, todas as manhãs, quando Guaraci Almeida sobe em sua bicicleta, ele também é um resistente ao império do aço. E, por essa coragem, ele tem toda a minha admiração.
Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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