A luta para tirar mulheres da invisibilidade histórica
24 de setembro de 2020Nos livros tradicionais de história, a maior parte dos heróis são homens. Às mulheres, em geral, são relegados papéis coadjuvantes. Graças a um esforço de pesquisadores – na maioria, aliás, mulheres –, a força feminina na formação brasileira vem sendo descoberta, estudada e escrita. O resultado está em trabalhos acadêmicos e em livros, como o Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, que a historiadora e escritora Mary Del Priore lança nesta sexta-feira (25/09).
Del Priore dá voz para as mulheres que acabaram invisibilizadas pela história: indígenas, afrodescendentes, caboclas que trabalhavam no campo, empregadas, amas de leite, operárias, artistas. Também mostra a resistência das feministas e das integrantes do movimento LGBT.
"Em vez de pensar sobre a violência contra a mulher brasileira, decidi [neste livro] refletir sobre as formas que a mulher brasileira engendrou, criou e encontrou para resistir à violência do patriarcalismo", diz a autora à DW Brasil. "Quis fugir do vitimismo. Contei a história de uma mulher que se levanta e diz não, que diz eu quero, eu mando, eu faço."
A historiadora considera que o século 19 foi um marco para a mulher brasileira: através do letramento, muitas puderam passar da vida privada para a vida pública. No livro, ela destaca o papel de mulheres no processo de Independência do Brasil, recuperando duas cartas – uma assinada por 186 mulheres baianas e outra, por 51 paulistas – escritas para a imperatriz Leopoldina (1797-1826), "solicitando que dom Pedro ficasse no país e fizesse a emancipação".
Ela destaca também o papel social da educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885), uma pioneira do feminismo. "Desde 1831 ela começou a publicar em jornais, tratando da importância da educação feminina, alertando sobre casamentos forçado", comenta.
Em outro esforço semelhante de ressaltar o papel que mulheres tiveram ao longo da história, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti lançou, há dois anos, o livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada, em que recuperou trajetórias de 200 personagens femininas invisibilizadas pelo tempo. Seu interesse pelo tema surgiu depois de ter publicado duas biografias de mulheres: da Marquesa de Santos e da imperatriz Leopoldina.
"Vi o quanto de suas vidas foi esquecido e encoberto ao longo da história e comecei a colecionar outros casos em que as passagens de outras mulheres também haviam sido apagadas ou modificadas para caber dentro de uma narrativa que se julgava correta", explica.
Uma das maiores surpresas de sua pesquisa, conta, foi se deparar com o caso das vivandeiras durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Eram mulheres que acompanhavam os homens no front. "Iam de amantes a mães, irmãs e esposas. E, muitas vezes, acabaram também pegando em armas", relata.
História patriarcal e machista
A historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), acredita que a mulher não está bem representada nos livros escolares de história por conta do fato de que, no Brasil, o gênero só adquiriu direitos políticos em 1932.
"A história dos livros está muito ligada à história da política, dos movimentos políticos e das pessoas que fizeram parte desse sistema", analisa. "Isso não significa de maneira alguma que as mulheres não estivessem naquele espaço, mas sim que foram esquecidas porque não tiveram atuação política significativa, ou seja, não tiveram participação naquilo que passou-se a considerar 'história de verdade'."
Ela ressalta, contudo, que há registros anteriores a isso que demonstram a atuação de mulheres em movimentos de resistência. É o caso de Luísa Mahin, personagem que viveu no século 19 e sobre quem pouco se sabe, mãe do abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Acredita-se que ela tenha participado ativamente de levantes de escravos ocorridos na Bahia, como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). "As mulheres são invisibilizadas porque acabaram silenciadas, há todo um processo machista e patriarcal", pontua Rosin.
"Entendo que a historiografia oficial, produzida por homens e pautada em eventos e personalidades políticas, militares ou religiosas, trouxe para as narrativas históricas esse cenário de exclusão da mulher ou de destaque de algumas exceções, o que apenas confirma a regra de exclusão, de invisibilidade", comenta à reportagem a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho, professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e autora do livro Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material.
"A história do Brasil foi contada durante séculos pelos homens, com um viés totalmente patriarcal e machista", acrescenta Rezzutti. "Uma mulher na política, por exemplo, era impensável até meados do século passado, como então explicar dona Leopoldina articulando a nossa Independência, por exemplo? Os papéis foram editados e embalados para consumo de uma sociedade que era moldada, majoritariamente, pelos homens. Contar a história da forma como eles queriam era só mais uma forma de controle sobre as mulheres."
Futuro promissor
Del Priore aponta que a segunda onda feminista chegou ao Brasil depois do advento da pílula anticoncepcional, nos anos 1960, e que essa militância acabou capitaneada, sobretudo, por universitárias.
Tal contexto fez com que ocorressem cada vez mais pesquisas sobre o papel da mulher na sociedade no meio acadêmico. Infelizmente, concordam os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a produção ainda é pouco lida pelo público geral.
Mas as perspectivas são otimistas. "A geração atual de pesquisadoras está conseguindo cravar o lugar social dessas mulheres pioneiras que foram invisibilizadas. Fazer esse trabalho é, para nós, como resgatar, pegar a mão de uma amiga”, afirma Rosin. "É um trabalho lento, mas o futuro é promissor – pelo menos quero acreditar nisso."
Del Priore vê atualmente uma transformação radical na família brasileira, com novos papéis para o homem. E, em seu livro, a historiadora reflete sobre como isso é bom – e não apenas para a mulher. "Termino [a obra] lembrando que sociedades machistas e patriarcais são tão cruéis com os homens como com as mulheres, porque deles é exigido não chorar, ter performances econômica e sexual imbatíveis, enfim, são tantas as exigências em torno do homem que ele acaba prisioneiro da própria armadilha que criou para a mulher", conclui. "O pano de fundo do livro é a resistência das mulheres. E as rachaduras do tradicional patriarcado brasileiro."