A luta contra o tempo para evitar uma tragédia no Pantanal
10 de julho de 2024Uma vez mais a cena se repete: Zilda de Souza passou dias observando a outra margem do Rio Paraguai, torcendo para que as chamas que consumiam a fazenda do outro lado não chegassem à comunidade ribeirinha onde vive no Pantanal sul-mato-grossense.
"Esse ano já queimou mais do que nos outros, estava pegando dentro da água, uma tristeza. Há muitos anos, o finado meu avô falou pra mim: ‘minha filha, eu não vou ver, mas você vai viver e verá, o mundo vai acabar com fogo'. É o que eu, com 54 anos, estou vendo hoje", comenta.
Como boa parte dos seus vizinhos, Souza vive da pesca hoje comprometida pelos incêndios que já bateram recorde neste ano. Até o início de julho, 700.725 hectares haviam sido destruídos pelo fogo, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ). Isso representa 19,29% do total queimado em 2020, ano da maior tragédia ambiental já vivida no Pantanal, quando o bioma perdeu um terço da sua vegetação.
"Olha, o que enfrentamos aqui foi assustador, porque a todo momento ficávamos no desespero do fogo vir para o nosso lado e atingir a nossa área. Qualquer faísca, qualquer fagulha que viesse para cá seria uma devastação total", comenta Virginia Paz, vizinha pescadora e responsável pela brigada de incêndio da APA Baía Negra. Uma mobilização criada após 2020, quando o fogo consumiu boa parte da área de preservação.
"Apesar de termos a nossa brigada preparada, passamos um momento de terror, pois talvez não conseguíssemos conter o incêndio. Então, dia e noite olhávamos o fogo só pedindo a Deus para proteger a nossa comunidade", relata Paz.
Apesar dos focos espalhados por todo o Mato Grosso do Sul, os incêndios se concentraram na margem esquerda do Rio Paraguai, entre a fronteira com a Bolívia e a BR-262, que liga Campo Grande a Corumbá. O munícipio abriga a força-tarefa de órgãos estaduais e federais que tentam conter as chamas antes do período mais crítico chegar. A cidade concentra quase 70% das queimadas.
Estiagem surpresa
Desde a última semana de junho o 3º Grupamento de Bombeiros de Corumbá recebeu o reforço de membros da Força Nacional de Segurança e de corporações de outros estados, além de aviões lançadores de água e o cargueiro KC-390 Millennium, da Força Aérea Brasileira (FAB). Com capacidade de 12 mil litros de água a cada sobrevoo, a aeronave já lançou 200 mil litros sobre os incêndios de Corumbá, segundo o governo.
A estes grupos se somam os brigadistas do PrevFogo, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, cuja equipe passou dos usuais 30 integrantes para mais de 200. Na última quarta-feira, um contingente de 30 brigadistas chegava de Rondônia após cinco dias de viagem.
Para auxiliar este batalhão de combatentes contra os incêndios, dois helicópteros do Ibama passam o dia levando e trazendo brigadistas e provisões para áreas de difícil acesso. Para o coordenador da operação, Charles Pereira, trata-se de um esforço inédito.
"Ter uma operação desse nível logo começando em junho é novidade para todos. Todo mundo foi pego de surpresa", avalia Pereira, que trabalha há 14 anos no órgão que promove prevenção e combate a incêndios florestais em todo país. "Nós esperávamos isso no período crítico, que é agosto, setembro, outubro. Ninguém esperava ver o Pantanal queimando desde o início de dezembro, janeiro, algo que as mudanças climáticas vêm promovendo."
Considerados apenas os seis primeiros meses do ano, 2024 registra as piores queimadas já vistas no Pantanal desde o início série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1998. Foram 3.538 focos – 39% a mais que no mesmo período de 2020. O fogo já devastou 5% do bioma somente no primeiro semestre deste ano. A região atingida é seis vezes maior do que a área da cidade do Rio de Janeiro.
Novas terras secas
O Paraguai, principal rio do Pantanal, que normalmente sobe de janeiro a junho, atingindo em média 4 metros de altura, não sobe desde o começo de maio e hoje está mais de 3 metros abaixo da média histórica, segundo dados da Marinha. Com o fim da estiagem prevista apenas para outubro ou novembro, a tendência é que a situação se agrave.
"Os rios já estão no estágio de não drenar mais água de superfície, estão drenando água do subsolo, que está mantendo os rios para eles não secarem. Uma boa parte dos cursos d'água dentro do Pantanal, que normalmente nessa época estão com água, por causa da chuva e tudo mais, estão completamente secos", observa o pesquisador da Embrapa Pantanal Carlos Padovani.
O MapBiomas já havia apontado que o Pantanal perdeu mais de 61% da massa de água desde 1985 em relação à média histórica. Com isso, muitas áreas que permaneceram décadas submersas e abandonadas hoje estão sendo ocupadas para a pecuária.
A atividade é predominante há quase 300 anos no Pantanal e, com métodos tradicionais, convive bem com a manutenção do bioma. A vegetação campestre alagada durante parte do ano – o que impede a grande monocultura mecanizada – somada à pecuária adaptada a essa realidade fez com que o Pantanal, mesmo após dois séculos de ocupação humana, seja o bioma mais preservado do país, com 84% do território nativo.
O uso do fogo para a limpeza de áreas rurais é regulado pelo Código Florestal e exige a licença dos órgãos ambientais estaduais. Desde 11 de junho, o Instituto de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) suspendeu estas licenças, até mesmo as em vigor, por tempo indeterminado. Segundo o governo estadual, foram lavrados 21 autos de infração e aplicados mais de R$ 10 milhões em multas de janeiro a meados de junho a proprietários que fizeram a queima no bioma sem licença.
"Essas regiões que estão queimando mais e queimaram em 2020 são propriedades rurais, com registro no CAR, mas que na prática estavam abandonadas por terem ficado submersas durante décadas. Esses últimos cinco anos mais secos as deixaram expostas, o que possibilitou a ocupação dessas áreas e o uso do fogo para permitir que cresça uma vegetação mais palatável para o gado", explica Padovani.
São justamente nos territórios com ocupação mais recente, próximos aos rios, riachos e corixos, com vegetação abundante e seca para queimar, onde estão os maiores focos de incêndio.
Todos a postos
Mangueira em punho e chapéu de boiadeiro, Divino Bispo Santiago, mais conhecido como Careca, enfrentava junto de bombeiros e membros da Força Nacional de Segurança o fogo que consumia a Fazenda São Bento, na qual trabalha como capataz desde que foi arrendada, há seis meses. O cenário corresponde com precisão ao descrito pelo pesquisador: em uma área extensa, a cerca de 6 quilômetros do rio Paraguai, se estende campos de um arbusto fibroso que queima, assim como o solo de turfa rico em matéria orgânica e onde o caminhar se torna mais difícil.
"O Pantanal já acabou. Vai ser uma crise muito grande com essa falta de peixes, do turismo de pesca, que é a base da região. Vai ter muita gente desempregada", afirma Santiago. "Para quem, como eu, que nasceu e cresceu aqui, o Pantanal faz parte da gente, mas com essa destruição toda, nossos filhos e nossos netos nunca vão chegar a ver o Pantanal que nós vimos."
O trator vem e volta da sede da fazenda, com um caminhão pipa a reboque, trazendo 2 mil litros de água que resfria um pouco as chamas e permite que os profissionais entrem com borrifadores e sopradores – estes sim, limpando o terreno e impedindo que o fogo avance. "Em chamas muito altas, ele chega com a mangueira, joga, diminui a intensidade da chama e, assim, a equipe que está em solo combate esse incêndio. Agora a estratégia é empurrar esse fogo em direção ao rio Paraguai, que é o melhor modo de extingui-lo", explica o sargento Igor Vinicius Santos, que veio de Brasília para atuar em Corumbá.
A 180 quilômetros dali, na região do Nabileque, o fogo ameaça os trilhos da Linha Tronco da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que liga Bauru a Corumbá, é observado de perto pelo fazendeiro Carlos Davalo. Montado em um quadriciclo e com um pano amarrado no rosto para evitar a fumaça, ele vai orientando seus funcionários na tentativa de impedir que as chamas que destroem um palmeiral cheguem à sua propriedade.
"O Pantanal não é fácil, não. Tudo é muito: muito inseto, muita terra, muita água, muito fogo, mas é ajeitado e vamos trabalhando ele", comenta pouco antes de correr para outro ponto. Após 12 horas de enfrentamento, Davolo, bombeiros, Força Nacional e trabalhadores das fazendas conseguiram conter o foco. "Mas de manhã já surgiu um novo mais abaixo", lamenta.
E assim caminha em 2024 o Pantanal. Entre batalhas inglórias e reduções de danos, profissionais e pantaneiros tentam impedir um triste recorde que supere o registrado em 2020 e mostre que a terra das águas a cada dia que passa se torna a terra do fogo.