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A indústria cinematográfica brasileira sob fogo

22 de julho de 2019

Bolsonaro ameaça extinguir Ancine e defende que haja "filtro" sobre os filmes aptos a receber dinheiro público. Audiovisual contribui mais para o PIB brasileiro do que as indústrias farmacêutica, têxtil e eletrônica.

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Sala de cinema
No Brasil, o setor audiovisual emprega mais de 330 mil pessoas e movimenta impostos diretos e indiretosFoto: picture-alliance/dpa/Fredrik Von Erichsen

Em 1976, as salas de cinema do Brasil ficaram lotadas como nunca antes. O motivo era a exibição de Dona Flor e seus dois maridos, uma adaptação do romance de Jorge Amado. Em plena ditadura militar, cenas de sexo tórridas embalavam o triângulo amoroso vivido por uma viúva dividida entre o espírito do ex-marido boêmio e a formalidade do novo casamento com um médico.

"Possivelmente, pelo conceito de [Jair] Bolsonaro sobre pornografia, o filme seria enquadrado dessa forma", supõe o produtor do longa, Luiz Carlos Barreto, de 91 anos. Ele faz referência à intenção anunciada pelo presidente da República de filtrar as obras que podem receber verbas públicas.

"Vai ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, passarei ou extinguiremos", afirmou Bolsonaro na sexta-feira (19/07). Questionado sobre a quais filtros se referia, ele respondeu: "Culturais, pô."

O presidente já havia aventado a possibilidade de peneirar produções na véspera, durante a cerimônia de assinatura do decreto que transferiu o Conselho Superior do Cinema (CSC) da estrutura do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. O órgão é encarregado de formular políticas para o setor.

Na ocasião, Bolsonaro também defendeu a transferência da sede da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para a capital federal. "A Ancine, a sede, eu acho que é no Leblon. Virão para Brasília. Aquelas noites badaladas, muita festa... vão fazer em Brasília agora essa festa", afirmou.

Os planos do presidente para a Ancine vêm tendo intensa repercussão no setor. A autarquia é responsável pelo fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica nacional. A agência conta com dois mecanismos de incentivo: a Lei do Audiovisual e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

A Lei do Audiovisual é um mecanismo de isenção fiscal similar à Lei Rouanet, legislação criada em 1991 que permite a captação de recursos para projetos e ações culturais em troca de incentivos fiscais a cidadãos e empresas que tenham interesse em patrociná-los. No caso da Lei do Audiovisual, a Ancine aprova o projeto para captação de recursos, e cabe ao produtor buscar empresas dispostas a utilizar o benefício da renúncia em seu projeto.

O FSA, por sua vez, é um fundo criado em 2008 com os recursos provenientes da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Trata-se de uma taxa que recai sobre o próprio setor sempre que uma obra é exibida publicamente.

Portanto, os recursos destinados ao fomento do setor audiovisual se originam nele próprio, e não "competem" com as verbas destinadas para outras áreas no Orçamento Geral da União, como saúde e educação. Por lei, essas verbas só podem ser utilizadas para o desenvolvimento do setor. Mesmo assim, entre 2013 e 2018, dos 7 bilhões de reais arrecadados pelo FSA, metade foi contingenciada pelo governo, tendo os recursos sido utilizados para reduzir o déficit primário.

"Afronta à liberdade de criação"

A discussão sobre os efeitos da mudança administrativa do CSC para a Casa Civil, tema do decreto editado pelo presidente, acabou ficando em segundo plano após as declarações de Bolsonaro, entendidas como uma forma de censura à produção artística.

Selecionado neste mês para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, entidade baseada nos Estados Unidos e responsável pelo Oscar, Luiz Carlos Barreto afirma que nem na ditadura militar houve tamanha afronta à liberdade de criação no cinema. Ele lembra que, após Dona Flor ser alvo de censura do então ministro da Justiça Armando Falcão, o presidente Ernesto Geisel liberou a veiculação depois de assistir ao filme.

"O regime militar, sobretudo no governo Geisel, foi a era de ouro do cinema brasileiro. Os melhores filmes de contestação e defesa da democracia e dos interesses populares e nacionais foram feitos nesse período. Atingimos uma participação de 40% do mercado em termos de frequência e receita da exibição cinematográfica, e chegamos a produzir 150 filmes por ano", recorda o produtor, que também assina os filmes Terra em transe (1967) e Bye Bye Brasil (1980).

Para justificar a necessidade de haver um filtro no financiamento público ao audiovisual, Bolsonaro tem utilizado como exemplo o longa Bruna Surfistinha, de 2011, no qual Deborah Secco interpreta o papel de uma famosa prostituta carioca. Embora tenha dito que não assistiu ao filme, ao qual se refere como "pornográfico", o presidente entende tratar-se de uma ameaça às famílias.

"O que está decidido? Dinheiro público não vai ser usado em filme pornográfico. E ponto final. Acho que ninguém pode concordar com isso", defendeu o mandatário. "Estamos estudando a possibilidade. Tem que ser lei, voltar a ser agência ou quem sabe extingui-la. Deixa para a iniciativa privada fazer filme. Já viram os títulos dos filmes do nosso Brasil que estão no mercado? Pelo amor de Deus!"

Cena do filme "Bruna Surfistinha"
"Bruna Surfistinha" gerou mais de 400 empregos diretos e indiretos e teve receita superior a 20 milhões de reaisFoto: Divulgação

Os números do setor audiovisual

Em 2016, o setor audiovisual superou a contribuição da indústria farmacêutica ao PIB brasileiro, com uma fatia de 0,46% correspondente a uma cifra de 25 bilhões de reais. O setor emprega mais de 330 mil pessoas e movimenta impostos diretos e indiretos. A participação na economia supera também as indústrias têxtil e de eletrônicos.

Alvo da indignação do presidente, Bruna Surfistinha atraiu mais de 2,1 milhões de espectadores, gerou mais de 400 empregos diretos e indiretos e teve receita superior a 20 milhões de reais. Considerando-se os gastos com serviços anexos às salas de cinema, estima-se que a produção tenha movimentado mais de 10 milhões em impostos diretos e indiretos.

"Vou continuar lutando para falar de assuntos que me interessam, como prostituição e hipocrisia. É um filme muito bem-sucedido", disse o produtor do filme, Roberto Berliner, em resposta às posições do presidente.

Em dezembro do ano passado, o executivo Erik Barmack, vice-presidente de conteúdo original internacional da plataforma de streaming Netflix, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que o Brasil está entre os três principais mercados da empresa no mundo.

Justamente pelo porte dessa atividade, um segmento importante do setor defende que a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual sejam alocados no Ministério da Economia, que incorporou a pasta da Indústria e Comércio no início do novo governo. É o que estava previsto na medida provisória que criou a agência, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

"A indústria cultural tem grande potencial econômico e deve ser planejada e gerida de uma forma não amadora. Ao elaborar o plano estratégico da medida provisória, queríamos colocar o Brasil numa rota de planejamento para a instalação e desenvolvimento de uma grande indústria audiovisual e cinematográfica. Isso só é possível no Ministério da Economia. Não queremos mais ser tratados como simples ornamento da sociedade", argumenta Luiz Carlos Barreto.

Desde o fim do primeiro governo de Dilma Rousseff, o setor pressionava para que o Conselho Superior do Cinema voltasse para a Casa Civil, demanda atendida no decreto assinado por Bolsonaro. A avaliação era de que a transferência para o Ministério da Cultura, iniciativa da ex-presidente enquanto ministra da Casa Civil, afetava a importância do órgão e conferia menor apelo às convocações realizadas a ministros que integravam o colegiado.

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