A busca de uma jovem estuprada por justiça
29 de outubro de 2014Quando brinca com o cachorro, Divia* é capaz de esquecer tudo – ao menos por um instante. "Os animais são seres melhores", diz. Ela acolhe cães de rua. Tem cinco só no apartamento de dois cômodos que divide com a irmã gêmea na capital indiana.
É incomum entre mulheres indianas, mas, no caso de Divia e da irmã, os seus pais lhes dão apoio para que vivam de forma independente. Eles financiam o estudo de Direito das filhas e vivem no estado de Assam, no nordeste da Índia.
O pai trabalhava como funcionário administrativo, a mãe é dona de casa. As economias do casal são destinadas à educação das filhas. Quanto ao destino de Divia, a sua irmã gêmea resume: "Ela mudou. Esta luta de anos em busca de justiça a tornou resistente."
Um encontro que virou pesadelo
Sua luta teve início em abril de 2009. As lembranças daquele dia já foram relatadas diversas vezes perante a Justiça: "Eu conheci o cara no Facebook. Ele havia passado semanas tentando me convidar para jantar. Em algum momento, eu concordei."
Divia sugeriu que os dois almoçassem num restaurante. E, mais tarde, cedeu e aceitou ir para o apartamento dele. "Eu não me senti muito bem, mas concordei. Eu era ingênua", conta a jovem, enquanto acariciava o cachorro aninhado em sua cama.
O jovem tinha 24 anos. Vinha de família abastada e vivia num bairro nobre. Quando chegou em casa, mandou um trabalhador doméstico embora e ofereceu vinho a ela. Divia recusou, alegando que não bebia álcool.
"Depois de uns 20 minutos, ele começou a me tocar. Eu me levantei, peguei a bolsa e tentei sair. Ele me agarrou e me jogou no sofá. Eu implorei para que parasse. Mas ele ameaçou me estuprar por 24 horas e me bateu no rosto", conta. "Eu ainda era virgem."
Quando ele terminou e a soltou, ela notou que sangrava muito. "Era como se eu estivesse anestesiada", diz, olhando para o vazio. "Depois, ele me falou que havia filmado tudo. E ameaçou publicar se eu não me calasse."
Quando o estuprador foi por um momento ao banheiro, ela tentou chamar um táxi: "Eu não consegui lembrar o endereço do apartamento. Então, ele saiu do banheiro e propôs me levar para casa. Eu não tive opção."
Num sinal vermelho, ela fugiu do carro e ligou para um amigo: "A primeira coisa que eu ponderei na ocasião foi no que os meus pais, os meus amigos e a sociedade iriam pensar de mim quando soubesse do ocorrido."
"Tragam a garota que foi estuprada"
Desde então, ela é perseguida por recorrentes pesadelos. Tentou várias vezes se suicidar. "Em minha terapia, aprendi a não me ver mais como vítima, mas como sobrevivente, isso me deu força", relata. Uma força que iria precisar, pois estava diante de um longo caminho: "Parecia uma tortura. Na polícia, no hospital ou no tribunal, em todos os lugares, você tem que contar tudo de novo."
Por medo de ser estigmatizada, Divia guardou, inicialmente, o estupro somente para si. À irmã gêmea, que já vivia com ela no apartamento em Nova Déli, disse que havia acontecido um acidente. Mas, dois dias depois, contou tudo, e a irmã se tornou a sua maior confidente. Ela convenceu Divia a ir à polícia e a acompanhou ao hospital.
Enquanto esperava para ser atendida, ecoou então por todo o corredor: "Tragam a menina que foi estuprada". A médica que a atendeu fez então o chamado exame dos dois dedos, que testa o alongamento da vagina.
O teste se destina a detectar se a pessoa afetada era virgem no momento da prática do crime ou se já havia tido relações sexuais anteriormente. No entanto, essa prática é altamente controversa, tendo sido classificada como desumana pela Suprema Corte da Índia.
Quando foi examinada num dos mais renomados hospitais da cidade, a médica atestou que ela havia sido estuprada. O que Divia não podia imaginar era que, mais tarde, a médica iria dizer perante a Justiça que nunca havia emitido nenhum parecer. "Ela foi comprada", afirma.
"Querim que me casasse com o agressor"
Antes de se chegar ao processo, Divia teve de vivenciar, dolorosamente, o que significa ser uma vítima de estupro na Índia. O caso se tornou público após a queixa. Os repórteres ocuparam todas as entradas possíveis ao redor de sua casa. "Os vizinhos também fofocavam. Eu e minha irmã deixamos Nova Déli por uns dias e fomos para Mumbai", relata.
Ao voltar para a capital indiana, elas procuraram uma nova casa: "Muitos dos meus amigos desapareceram, porque não queriam ter alguma coisa a ver com uma estuprada."
Seu namorado terminou o relacionamento depois que Divia lhe contou o que aconteceu. "Só os meus pais e alguns amigos próximos me apoiaram", lamenta. Um desses amigos próximos é Heema, que se mudou para a casa de Divia e de sua irmã: "Estávamos do seu lado e tentávamos distraí-la. Eu admiro o fato de ela não se dar por derrotada."
Mas o estuprador tentou o possível para influenciar a família de Divia, as testemunhas do processo e conhecidos. "Ele ofereceu dinheiro ao meu pai para que ele retirasse a queixa. Meus amigos e conhecidos receberam ligações. O advogado dele propôs simplesmente que nós deveríamos nos casar. Tudo para conseguir uma absolvição."
Como nada adiantou, a defesa argumentou simplesmente que a relação sexual havia ocorrido de comum acordo. E, finalmente, foi grande a decepção com a absolvição do réu, em 2011, devido "à dúvida considerável sobre o depoimento da queixosa."
Até a Corte Suprema
Até hoje, Divia não leu as 57 páginas do veredicto. Mas sua irmã o fez – e tenta levar o caso adiante: "Atualmente, isso se tornou o nosso caso", diz, folheando a pasta à sua frente. "Eu ainda não perdi totalmente a confiança na Justiça. O nosso recurso foi aceito por uma alta corte, e um processo em separado está em andamento contra a médica que afirmou que a sua assinatura havia sido falsificada."
A advogada Rebecca John diz ter todas as provas. Ela defende gratuitamente mulheres como Divia nos tribunais. "Foi a ideologia patriarcal que prevaleceu nesse processo", garante. "Mulheres como ela devem ser extremamente fortes para aguentar tudo isso."
Mesmo que tenham de levar o caso até a Suprema Corte da Índia, as duas irmãs não pretendem desistir. "Os pesadelos me perseguem ainda hoje, mas aprendi a bloqueá-los", conclui Divia.
*Nome alterado pela redação