Ricardo Chibanga, o primeiro toureiro africano, faz 70 anos
Golegã, berço do cavalo lusitano na região do Ribatejo, fica a cerca de 130 quilómetros a norte de Lisboa. É aqui que vive Ricardo Chibanga.
Olhar sereno, homem de porte alto, aparentemente tímido mas de estatura ainda firme, Chibanga espera pela reportagem da DW África frente ao Café Central, na praça principal - onde está erguida uma estátua em homenagem ao seu tutor Manuel dos Santos. Este é um dos lugares que mais frequenta e onde cruza com todas as simpatias da vila.
Acabámos por ir almoçar a outro lugar, no restaurante Sandy, na Rua José Relvas, onde mora. É aqui que começamos a conhecer melhor este toureiro ou matador, nascido em Lourenço Marques, Moçambique, a 08.11.1942. Já aos 14 anos, apaixonou-se pelos touros. Aos 18, em 1962, o menino oriundo do bairro de Mafalala, tal como os futebolistas Eusébio, Coluna e Hilário, veio para Portugal.
"Vim porque eu gostava da festa em Moçambique. E, no entanto, quando comecei a gostar das festas em Moçambique, aqueles senhores aficionados do mundo do touro acharam que eu e mais outro amigo meu tínhamos qualidades para sermos toureiros", relata aos microfones da DW África. "Eu não tinha noção absolutamente nenhuma do que era ser toureiro. Quando vi os toureiros portugueses, espanhóis, mexicanos em Moçambique, adorava, porque via aquele fato bonito, bem vestidos a dominar o toiro, era uma maravilha", recorda-se Chibanga.
Foram duas pessoas que trouxeram Ricardo Chibanga de Moçambique para a ex-metrópole: Alfredo Ovelha e Manuel dos Santos falaram com então governador geral de Portugal em Moçambique, o almirante Sarmento Rodrigues. "Manuel dos Santos ainda era toureiro. Quem era um grande empresário era o senhor Alfredo Ovelha", descreve o primeiro toureiro internacional africano e negro.
"Pediram a ele se nós podíamos vir e, não sei o que se passou, o senhor governador ofereceu-nos a passagem nos aviões da Força Aérea. O senhor Alfredo Ovelha assinou o termo de responsabilidade da nossa vinda para a metrópole para estarmos cá três meses. Quando chegamos a Lisboa, vi outro mundo, coisa que eu nunca pensava conhecer e apaixonei-me pela festa de touros", diz Chibanga.
De assustado a matador de touros
Chegaram numa quinta-feira a Lisboa. No dia seguinte, Ricardo Chibanga foi levado às tradicionais festas de Nazaré, onde viu Manuel dos Santos (nascido em 1925 e falecido em 1973) e Diamantino Vizeu (nascido em 1923 e falecido em 2001) tourearem no mesmo dia. "No sábado, era a vez de Manuel e António Santos. E no domingo, puseram-nos diante de uma vaca", conta Chibanga. "[Era] uma vacada que faziam lá em Nazaré. Aquilo era só correr. Muito medo, contudo que não tinha noção do que era aquilo. As pessoas acharam graça e no ano 62, quando viemos, acabou a temporada para voltarmos novamente a Moçambique".
Não regressou a Moçambique
O regresso nunca aconteceu. Chibanga e o amigo Carlos Mabunga acabam por ser levados com outros rapazes à Escola de Tourada, em Torres Novas, onde teve início a sua formação. Dois anos depois, Chibanga cumpriu o serviço militar obrigatório em Lisboa, ao mesmo tempo que o jogador de futebol Eusébio. A seguir à tropa continua a formação de toureiro na Golegã.
"Depois quando viram que eu estava em condições positivas levaram-me para Espanha. Arranjaram lá um agente artístico apoderado, em Sevilha. Graças a Deus comecei a tourear em Espanha, Portugal e França como novieiro. As coisas correram muito bem. Tomei depois a Alternativa, em 1971, na Maestranza de Sevilha", lembra-se.
Na tauromaquia, a Alternativa é a cerimónia pela qual o novieiro recebe a categoria de matador de touros. A cerimónia chama-se Alternativa porque o iniciante alterna pela primeira vez durante um festejo com outros matadores de touros.
A primeira vez que enfrentou um touro, contou-nos Chibanga, fê-lo com medo e apreensão, mas com coragem e vontade de vencer.
Toureiro pelo mundo
A partir daí, Ricardo Chibanga passou a correr o mundo, ou como diz, "os quatro continentes", a tourear. Passou por Portugal, Espanha e França, foi ao México, à Venezuela, aos Estados Unidos e ao Canadá). "Na Ásia toureei em Macau e na Indonésia e, em África, toureei em Moçambique, onde nasci, e em Angola. As pessoas tinham uma simpatia comigo e davam-me todo o calor para eu poder triunfar. E triunfei, graças a Deus".
Depois do almoço, vamos a pé até à Câmara Municipal da Golegã. Todos com quem cruzámos cumprimentam Chibanga, o mestre. A cozinheira do restaurante Sandy, Maria Luisa, por cá há quatro anos, conheceu o toureiro pela televisão. "Depois conheci-o lá no restaurante e aqui. Não sou aquela fã mas naquela altura gostava de ver. Toda a gente gostava de ver", explica.
Outros habitantes de Golegã tiram-lhe o chapéu. É o caso de Maria de Fátima, oriunda de Cabo Verde, que tem com ele uma boa relação de amizade. "Já o encontrei cá, mas ele ainda era um rapazinho novo na altura. Agora é que já estamos mais velhotes. Os espetáculos dele eram bons, era famoso. Uma vez acordei de noite, não tinha sono, liguei a TV, estava um espetáculo dele na América a passar naquela hora da madrugada. Coisa importantíssima. Adorei", ri.
Filho legítimo de Golegã
Caminhamos até à rua que recebeu o seu nome, no extremo norte da vila: "Rua Ricardo Chibanga, Matador de Touros, Aluno da Escola de Toureio da Golegã, que tomou Alternativa na Real Maestranza de Sevilha, em 15 de Agosto de 1971" - lê-se na placa. Um tributo ainda em vida, prestado pela Câmara Municipal. Chibanga mostra-se grato: "A simpatia e o afeto que esta terra tem por mim, a qual muito agradeço. É a segunda terra da minha vida. É um carinho muito especial que as pessoas têm por mim e só tenho que dizer obrigado", diz.
Homenagem que o presidente da edilidade, José Viega Maltez, realça: "Sobretudo eu acho que é um filho da Golegã, muito mais que filho adotivo, porque faz parte dos goleganenses. Se calhar muito mais goleganense que outros goleganenses. Ricardo Chibanga para nós representa uma das personalidades do concelho. É interessantíssimo que muitas pessoas quando se fala na Golegã perguntam logo por Ricardo Chibanga. Portanto, ele também é um embaixador da Golegã. Fazia todo o sentido", afirma Maltez.
O primeiro toureiro africano
Grande parte da história de Ricardo Chibanga como matador de touros está exposta em sua casa, na Rua José Relvas, nº 45. Chibanga faz questão de nos mostrar este registo e recordar nesta espécie de museu alguns dos seus momentos de glória - como a Alternativa de 1971.
"Esta fotografia foi o dia mais lindo da minha vida, onde me consagrei como o primeiro toureiro africano", lembra Chibanga. "Isto foi em Sevilha, no dia 15.08.1971. O meu padrinho foi D. Antonio Bienvenida e o testemunho da minha confirmação foi o mestre Rafael Torres. E aqui é na altura da minha consagração, D. Antonio Bienvenida me entrega os trastes, como nós chamamos, e diz: 'hoje é o dia mais feliz da sua vida, você está aprovado para ser matador de touros'".
Ricardo Chibanga tem orgulho de ser o primeiro africano negro a entrar no mundo dos toureiros dominado tradicionalmente por brancos europeus. Desse período não guarda qualquer reserva ou amargura. Diz que nunca sentiu qualquer espécie de discriminação nos lugares por onde passou. Pelo contrário: ajudaram-no, como fez questão de sublinhar. Em Lisboa, no Campo Pequeno, recorda que até foi levado aos ombros pelo público em 1968.
Volta a Moçambique
Mesmo depois de tantos anos em Portugal, Chibanga continua a sentir-se moçambicano. E tem planos de ir visitar o seu país de origem: "Muito [em] breve. Tenho saudades de ir ver a família e de ir dar um abraço a todos os meus irmãos moçambicanos. Sinto orgulho de ser moçambicano", diz à DW África.
Do outro lado da sala, pendurados na parede, estão as cabeças dos dois touros de consagração de Chibanga. "Este", aponta, "é o touro da minha Alternativa e aquele é quando toureei pela primeira vez e a única no Monumental do México, a maior praça do mundo", explica. "Também tive a sorte quando tomei a Alternativa e hoje considero-me um homem feliz. Porque aquilo por que me apaixonei, por aquilo que passei, as cornadas que levei, fazem parte da profissão".
"Toda a gente o conhece"
Os momentos de glória também deixam sorrir a filha de Ricardo, Anete Chibanga, de 33 anos, nascida em Torres Novas, perto de Golegã. "Sabe que quando nasci meu pai já era o que era, portanto eu sempre fui habituada a isso. Tenho situações de sítios que vou e as pessoas [mostram-se admiradas]. Por isso tenho noção da dimensão. Eu vou a uma corrida de touros com o meu pai é assim uma loucura. Toda a gente o conhece. Acho que isso o ajudou muito e é um orgulho também para todos nós", relata.
Hoje, Chibanga é empresário, tem uma praça de touros desmontável que põe ao serviço do público na temporada que começa em abril e termina em novembro.
No dia 8 de novembro de 2012, Ricardo Chibanga, o primeiro toureiro negro e africano, celebra 70 anos de vida.
Autor: João Carlos (Lisboa)
Edição: Renate Krieger / Johannes Beck