1. Ir para o conteúdo
  2. Ir para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Incidentes no bairro da Jamaica geram debate sobre racismo

25 de janeiro de 2019

Incidentes no bairro da Jamaica, em Portugal, evidenciam "a falta de preparação da polícia", afirma socióloga. Para esta sexta-feira estão previstos protestos contra a discriminação racial e a violência policial.

https://p.dw.com/p/3CBM1
Foto: J. Carlos

Os últimos incidentes no bairro da Jamaica, no Seixal, sul de Portugal, envolvendo uma família angolana vítima de agressões por parte de agentes da polícia, suscitaram o debate sobre o racismo institucional na sociedade portuguesa.

Hernâni Miguel, um dos rostos conhecidos da cidade de Lisboa, onde chegou em 1965, diz que nunca foi vítima de um ato racista em Portugal. Mas o guineense naturalizado português, de 60 anos, conhece vários casos de discriminação envolvendo amigos africanos, ainda nos anos de 90.

"Conheço algumas pessoas que tiveram situações embaraçosas. Todos eles foram com africanos", diz. "Esses meus amigos, alguns estavam em sítios onde não deviam estar, na hora errada, mas isso não era motivo para que as coisas descambassem como descambaram."

Hernani Miguel
Hernâni Miguel: "Conheço algumas pessoas que tiveram situações embaraçosas"Foto: DW/J. Carlos

O empresário, dono de um conceituado bar na capital portuguesa, conta que tais atos de excessiva violência por parte da polícia contra africanos poderiam ter sido substituídos por diálogo pedagógico. E Hernâni Miguel lembra uma frase do ativista político norte-americano que lutou contra a discriminação racial, Martin Luther King: "Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos."

"Ou seja, quer queiramos quer não, a não-violência é que é a arma. Não é a violência de ambas as partes", afirma.

É desta forma que Hernâni Miguel olha para a recente violência policial contra uma família de angolanos, residente no bairro da Jamaica. O incidente ocorrido naquele bairro, na manhã de domingo último (20/01), mobilizou cerca de duas dezenas de jovens africanos e afrodescendentes que, no dia seguinte, promoveram uma manifestação de protesto em Lisboa, igualmente desmantelada pela intervenção da polícia.

Pelas redes sociais e na praça pública surgiram reações condenando a atitude dos agentes policiais.

Debate sobre racismo

Mário de Carvalho, dirigente de um movimento associativo, lembra-se de vários casos de violência policial na zona da Amadora, periferia de Lisboa, onde vive uma larga comunidade de imigrantes africanos.

Carvalho admite que existe racismo em Portugal e uma má interpretação das leis por parte das forças policiais, "mas o que nós não podemos fazer é extrapolar, generalizar, e dizer que a sociedade portuguesa é racista."

Mario de Carvalho
Mário de Carvalho: "Existem práticas racistas dentro da sociedade portuguesa"Foto: DW/J. Carlos

"O que eu acho é que existem práticas racistas dentro da sociedade portuguesa, e aí é que temos que ter toda a nossa força de criminalizar e denunciar" tais práticas", acrescenta.

O ativista cabo-verdiano, ligado à cooperativa "MovingDiáspora", defende que a criminalização de tais práticas compete a instituições como o Ministério Público, que tem por incumbência investigar, concluir e decidir sobre os crimes.

Não basta uma ação pedagógica, comenta Mário de Carvalho, reconhecendo que esta matéria deve ser discutida profundamente, mas no tempo certo, já que, segundo diz, a polémica à volta dos últimos incidentes com a polícia está a ser contaminada com as próximas eleições em Portugal pelos populistas e demagogos.

Hernâni Miguel lembra que os casos de violência policial não são de hoje, mas receia uma "nova Europa de direita, que está a crescer".

"Não sou eu que o digo, já veio publicamente plasmado na imprensa que temos alguma polícia de direita [em Portugal], mas de uma direita extremista", refere.

Miguel considera que o problema está nas chefias das polícias, o que constitui uma preocupação: "Aquelas recentes imagens no bairro da Jamaica não fazem sentido em lado nenhum", afirma, recordando "com repúdio total" o ódio racial nos Estados Unidos contra os afroamericanos e a política de 'guetos' nos chamados bairros sociais em Portugal.

"Este é um dos erros que se cometeu no passado. Estamos a tempo de os retificar", aconselha.

Portugal Nachbarschaft "Jamaika" in Seixal
Casas no bairro da Jamaica, no SeixalFoto: DW/J. Carlos

Violência e condições sociais

Luzia Moniz, abordada pela DW na qualidade de socióloga, sustenta que estes fenómenos inerentes à violência policial contra africanos e afrodescendentes não são atos isolados. E frisa que "não só há discriminação racial como também discriminação social."

"Este episódio do bairro da Jamaica traz ao de cima […] a falta de preparação da polícia para lidar com aqueles que estão na base da pirâmide social, que é o caso daquelas famílias que vivem naquelas zonas degradadas sem qualquer condição humana para os padrões europeus."

Incidentes no bairro da Jamaica geram debate sobre racismo

A socióloga angolana lamenta, dizendo que "a preservação da segurança pública não se faz com a agressão, com a violência contra o cidadão". O que, na sua perspetiva, releva para a questão do racismo institucional e estrutural que existe na sociedade portuguesa. "E isso não pode ser escamoteado", sublinha.

Na passada terça-feira (22/01), a Embaixada de Angola em Portugal reagiu aos incidentes no Seixal, entre agentes da Polícia de Segurança Pública e um grupo de moradores do bairro da Jamaica, tendo enviado uma nota formal de protesto ao Governo português. A Embaixada refere, num comunicado tornado público, que "reprova inequivocamente tais atos, denunciando quaisquer tentativas de aproveitamento ou a intenção de ligação desses desacatos que põem em causa a tranquilidade e ordem pública".

No mesmo dia, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, disse à imprensa que não tinha recebido a nota de protesto de Angola.

No Ministério Público português está em curso uma investigação sobre os acontecimentos no bairro da Jamaica.