Ossadas, caveiras e a reconciliação com o passado colonial
13 de abril de 2018Quando se tornou assistente de direção no Museu de Etnologia de Berlim, em 1885, o antropólogo Felix von Luschan deu luz verde a uma grande "campanha de coleção". Pelas várias colónias, europeus juntaram milhares de caveiras e ossos que enviaram para Berlim. Como outros cientistas do seu tempo, Luschan queria usá-los para estudar o desenvolvimento humano. Mas muitas destas relíquias humanas acabaram a ganhar pó em armazéns durante décadas.
Cerca de 5500 restos humanos da coleção de Luschan pertencem agora à Fundação de Herança Cultural da Prússia, que gere um número variado de museus, arquivos e bibliotecas na Alemanha. Para Hermann Parzinger, diretor da Fundação, este é um "legado difícil”.
Na maior parte das vezes, os colecionadores não se preocuparam em obter o consentimento devido quando levaram os restos humanos. Bernhard Heeb, arqueólogo encarregado de investigar as histórias das caveiras, descreve que houve uma "febre da coleção".
"Em alguns dos casos, os crânios foram tirados de campas, às vezes muito clandestinamente", explica à DW. "Também era possível que os restos humanos fossem encontrados ao ar livre, mas hoje em dia seria obviamente inaceitável pegar neles".
Além de colecionadores oficiais, missionários e administradores coloniais também se juntaram à caça e enviaram várias ossadas humanas para instituições de investigação alemãs.
Enterros dignos
Milhares de caveiras e ossos continuam guardados em museus na Alemanha, não apenas nos arquivos da fundação de Herança Cultural da Prússia. Um assunto que passa ao lado da generalidade do público alemão, mas não aos descendentes de africanos.
"Para muitas pessoas que conheço, é um sentimento terrível saber que não puderam dar um enterro digno aos seus antepassados", Mnyaka Sururu Mboro contou à DW. O ativista nascido na Tanzânia é co-fundador da "Berlin Postkolonial", uma associação que tenta alertar as consciências sobre o passado colonialista alemão.
Os museus ignoram o passado negro que arrumaram nos arquivos durante décadas. "Os crimes do século XX - a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, também o Holocausto - acabaram por esconder o passado colonial durante muito tempo", explica Hermann Parzinger.
Mas a pressão tem vindo a aumentar nos últimos anos. Entre 2011 e 2014, o Hospital Universitário de Berlim devolveu à Namíbia várias caveiras do povo Herero. Outras organizações também já devolveram restos humanos que tinham obtido.
A Fundação de Herança Cultural da Prússia quer seguir esse exemplo. Um projeto iniciado no ano passado procura investigar a origem exata de cerca de 1000 caveiras da coleção de Luschan, recolhidas por um explorador polaco no Leste africano, onde hoje se situam o Ruanda, a Tanzânia e o Burundi.
"Não deviam voltar para a cave"
Uma vez que não existem inventários, a equipa de Bernhard Heeb está a procurar pistas em arquivos, registos de viagens e outros acontecimentos históricos. Numa segunda fase, Heeb planeia viajar até África e continuar a investigar com os colegas africanos. A Fundação diz também querer saber da história de outras caveiras na sua posse. "Estamos a investigar para que possamos devolver [as caveiras]", disse o presidente da Fundação.
Não há uma lei alemã que obrigue a Fundação, ou outra instituição, a fazê-lo. Há apenas indicações não vinculativas da Associação de Museus da Alemanha que recomendam que se devolva qualquer objeto adquirido de forma ilegal.
A Fundação de Herança Cultural da Prússia promete que vai comunicar com os governos dos países de onde foram retiradas as caveiras para discutir os próximos passos, incluindo o seu retorno.
"Para nós, é ótimo se as caveiras forem enterradas nos países de origem", comenta Parzinger, "mas não deviam voltar para caves como de onde as tirámos".
Ativistas africanos céticos
Ativistas como Mnyaka Sururu Mboro continuam céticos em relação ao trabalho de museus e instituições que têm em sua posse restos humanos vindos de África.
"Estão sempre a dizer 'Primeiro temos de investigar de onde vieram as caveiras para a Alemanha ilegalmente'. Com esta aproximação, arranja-se sempre razões para as manter aqui", queixa-se.
Mbroro considera que podia ser feito mais na investigação das origens das caveiras, como envolver a população local. "Há muita gente na Tanzânia que conhece onde é que alguém foi decapitado e a sua cabeça foi enviada para a Alemanha".
Regressar às origens
O historiador Richard Kirey, professor na Universidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia, e doutorando na Universidade de Hamburgo, concorda que se podem encontrar pistas nos locais de onde foram levados os restos humanos.
"Alguns do túmulos foram mesmo bem marcados", disse à DW. "A família de Songea Mbano [líder de uma revolução contra colonizadores alemães] compôs o sepulcro de uma forma que indica que o crânio está a faltar. Tem dois compartimentos. Na primeira divisão, é referido que a cabeça não está lá. As outras partes do corpo estão na segunda divisão".
Kirey relembra ainda a importância de envolver as comunidades africanas em todo este processo. "É preciso ouvir estas pessoas e perceber o que pedem. Elas deveriam indicar como se deve começar a procurar e devolver as caveiras. Tem de estar adaptado aos seus costumes e tradições", argumenta o historiador.
Alguns meios de comunicação social avançam que o Governo da Tanzânia está a considerar exigir o repatriamento de Songea Mbano, que foi assassinado pelas tropas coloniais alemãs em 1906. Ninguém espera que o debate sobre os crânios termine num futuro próximo - muitos, como Parzinger, preveem que este se alargue.
"Este tipo de coleções não existe só em Berlim, mas também em Paris e Londres. A dada altura, é um tópico que vai ser discutido lá".