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"O MPLA sempre tratou os dissidentes da pior forma" - 27 de maio de 1977 em Angola - 2ª parte da entrevista com Dalila Mateus

Carlos, Joao12 de maio de 2012

Vamos tentar perceber os contornos internos e externos da perseguição violenta dos chamados "fraccionistas" pelo MPLA de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, durante a qual morreram milhares de pessoas.

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A historiadora portuguesa Dalila Mateus publicou com o seu marido Álvaro Mateus o livro "Purga em Angola" sobre este episódio da história angolana. Nesta segunda parte da entrevista à DW, ela fala sobre os contornos dos acontecimentos.

Um papel importante no 27 de maio de 1977 tiveram os soldados cubanos, que lutaram ao lado do MPLA de Agostinho Neto (na foto: início da retirada dos cubanos de Angola em 1989).

De acordo com Dalila Mateus, muito da história de Angola e sobre o 27 de maio de 1977 ainda estará por contar, porque falar destes acontecimentos tornou-se um tabu, pelo clima de medo que se instalou naquele país. Toda a documentação que tem recolhido está depositada na Torre do Tombo em Lisboa e Dalila Mateus tem esperanças que, a seu tempo, o Tribunal Penal Internacional possa debruçar-se sobre estes atos para que seja feita justiça em nome das vítimas e dos seus familiares.

DW África: Muitas vítimas eram militantes do MPLA, considerados "heróis" da luta contra os portugueses. Como se explica tanta violência dentro de um movimento de libertação?

Dalila Cabrita Mateus: O MPLA era, de facto, uma frente, agrupando gente de diferentes quadrantes políticos e sociais: comunistas pró-soviéticos, pró-chineses, pró-titistas, nacionalistas negros, terceiro-mundistas e muitos outros, que estão dentro do MPLA.

Mas Neto trata esta frente como um partido leninista, construído sobre o princípio do chamado centralismo-democrático, mas com muito centralismo e pouca democracia. Ele é presidente, é o secretário-geral e é o tesoureiro. E quem não pensa como ele é dissidente ou "fraccionista".

E estes dissidentes são tratados sempre da pior forma. A Assembleia que elege Neto para presidente, elege para vice-presidente Matias Miguéis, também negro. Matias Miguéis era adepto de Viriato da Cruz. Em 1965, foi levado para Dolisie [hoje Loubomo, uma cidade da República do Congo] e morto. A partir daqui, a partir desta data, a execução dentro do MPLA passa a ser a forma de resolver o problema das dissidências.

DW África: Muitos protagonistas do levantamento do 27 de maio eram militares da chamada 1ª Região Militar, que lutaram contra o colonialismo português? Porquê?

DM: De facto, perto da capital [Luanda], formou-se um grupo de guerrilha, cujos primeiros elementos foram participantes no 4 de Fevereiro de 1961. Praticamente não tinham ligações com o MPLA, que só uma vez, através de um destacamento comandado por Monstro Imortal [nome de guerra de Joãõ Jacob Caetano, comandante do MPLA], conseguiu chegar até eles, levando-lhes alguns alimentos e armas.

Quem são estes homens da 1ª Região Militar? Apoiavam-se nas redes clandestinas que se iam formando na cidade de Luanda. Resistiram13 anos aos ataques do exército português, da polícia política portuguesa, a PIDE, e até da FNLA [movimento de libertação concorrente]. E nunca foram aniquilados.

No Congresso de Lusaka, foi o seu representante, Nito Alves, que salvou Agostinho Neto. O qual começou por lhe "pagar" promovendo-o. Mas, depois, expulsou-o, prendeu-o e, finalmente, mandou-o matar.

Parece ter sido fuzilado. Depois, segundo as nossas informações, a sua cabeça andou decepada por Luanda, em cima duma carrinha. Finalmente, segundo dizem, terão atirado o corpo ao mar.

DW África: Muitos dos angolanos que estudaram na União Soviética foram chamados de volta e executados. Porquê tanto medo dos que tinham ligações com a União Soviética?

DM: Não só da União Soviética, mas de todos os países de Leste e mesmo de Cuba. E o problema não era o medo dos comunistas. Eram simples bolseiros que se formavam nas universidades. Na esmagadora maioria não eram comunistas, nem se interessavam pela política. O problema era outro.

Nas explicações oficiais sobre o 27 de Maio, uma das versões era que se tratava de um golpe dos comunistas, apoiado pela União Soviética e pelo PCP [Partido Comunista Português].

Essa versão destinava-se a facilitar o "namoro" aos Estados Unidos da América, que na altura apoiavam a FNLA e a UNITA [os dois movimentos angolanos de libertação concorrentes ao MPLA].

Ora como não havia comunistas suficientes para justificar esta atuação, então inventaram-nos. Mandaram, então, regressar os bolseiros nos países de Leste, que pensavam ir para o Congresso do MPLA. Estes homens são convencidos que vão a Luanda para participar no Congresso do MPLA. Mas, ao desembarcarem, foram presos. E, segundo um antigo dirigente do MPLA que eu entrevistei, acabaram por ser degolados.

Da matança, só escapou o filho de Neto e um amigo que estudavam na Roménia.

DW África: José Eduardo dos Santos estudou na União Soviética, em Baku, licenciou-se em Engenharia de Petróleos. Mesmo assim escapou à repressão. Como explica isso?

DM: Quanto a Eduardo dos Santos, dirigente do MPLA, também esteve para ser preso. Mas não por ter estudado na União Soviética. Mas sim, pensamos nós, que correu este risco pelo facto de, sendo presidente de uma comissão de inquérito ao fraccionismo, ter assinado um relatório em que ele próprio que negava a existência desse fraccionismo.

Pelo menos, na Cadeia de S. Paulo, um dos carrascos dizia muitas vezes que, para quem queria ouvir, só faltava prender Lopo de Nascimento (o primeiro-ministro) e o Eduardo dos Santos. Que só não foi preso, porque o governador do Lubango, onde se encontrava, não o deixou prender.

DW África: Qual era o modelo do "Poder Popular" que Nito Alves defendia?

DM: No nosso livro dizemos que Nito Alves padecia das limitações de quem vivera muitos anos isolado e acossado. Se pensamos como viveu esta gente na 1ª Região, eles estavam sistematicamente a ser acossados pelo exército português, pela PIDE e pela FNLA.

Portanto, Nito Alves encontra um manual marxista e transforma este manual numa espécie duma nova Bíblia, onde ele encontra soluções para todos os problemas.

Mas estas limitações vão levar a estas manifestações, que por vezes podem parecer - ou são - de radicalismo e de dogmatismo. As suas "Treze Teses" são de facto um texto insuportável, com dezenas de citações a propósito e, sobretudo, a despropósito.

No entanto, quem aparecia a defender soluções radicais eram Neto e alguns dos seus homens, que, de vez em quando, falavam da "revolução proletária".

Não ouvimos isto de Nito Alves. Ele e os elementos mais esclarecidos do seu grupo retorquiam que era um disparate, pois em Angola não existia uma classe operária capaz de realizar tal revolução. E preferiam falar de uma democracia popular.

DW África: Era um modelo democrático ou comunista, inspirado na União Soviética?

DM: O modelo soviético não tinha qualquer sentido em Angola, até porque a maioria dos operários e técnicos qualificados eram portugueses. E é um erro pensar que eram ideológicos os problemas que preocupavam Neto e os seus próximos.

O que os preocupava era, em primeiro lugar, a denuncia que os nitistas faziam da corrupção, que estava a acontecer. E davam exemplos concretos dessa corrupção.

Preocupava-os, em segundo lugar, a influência dos nitistas nas organizações populares eleitas nos musseques [os bairros pobres de Luanda]. Eram eleitas as organizações populares e essas organizações tinham um papel fundamental.

E preocupava-os, em terceiro lugar e principalmente, a possibilidade real de os "nitistas" virem a conquistar a maioria dos delegados no próximo Congresso [do MPLA].

DW África: Além de fraccionismo, Nito Alves foi também acusado de racismo. Com razão?

DM: De facto, Nito Alves foi acusado de racismo por ter afirmado que "no dia em que, em Angola os cidadãos varredores de ruas forem não só negros, mas mestiços e brancos também, o racismo desaparecerá". Aí estava o "racismo das lagartixas", acusava o Jornal de Angola.

Só que a citação estava incompleta. Nito Alves dissera também que o racismo teria desaparecido no dia em que "os camaradas angolanos de origem europeia" puderem ascender "aos mais altos órgãos do MPLA e às responsabilidades administrativas e outras no aparelho de Estado".

Admitir que brancos e mestiços, considerados "angolanos de facto e de direito", pudessem ocupar cargos de topo no MPLA ou no Estado não é uma posição racista.

DW África: Algumas vítimas do 27 de maio tinham tido ligações estreitas ao Partido Comunista Português (PCP), que, por sua vez, era um aliado do MPLA na luta anticolonial. Que papel teve o PCP nos acontecimentos?

DM: A única pessoa que foi directamente acusada pelo MPLA de ser do PCP era Sita Valles, que fora dirigente da UEC - União dos Estudantes Comunistas. Mas Sita Valles já não era membro do PCP.

Um mês depois do 27 de Maio, Sérgio Vilarigues, membro do Secretariado e da Comissão Política do PCP vai a Luanda e dá uma entrevista ao oficioso Jornal de Angola. Em setembro, a editora comunista publica a versão dos dirigentes do MPLA sobre os acontecimentos. E nesse mesmo mês de setembro, o vice-director da DISA, ainda hoje conhecido em Angola pelo "assassino", encabeça uma delegação do MPLA presente na Festa do jornal comunista Avante!

Assim, se houve participação do PCP foi ao lado do Presidente de Angola [Agostinho Neto] e dos "vencedores" do 27 de Maio.

DW África: Como se explica o facto de, fora de Angola, poucos conhecerem a repressão do 27 de maio quando, ao mesmo tempo, todo o mundo conhece as atrocidades cometidas pelo ditador chileno Augusto Pinochet, mais ou menos na mesma época, mas que "apenas" causaram a morte de aproximadamente 3.000 pessoas?

DM: Difícil seria que fosse doutro modo.

Primeiro porque, mesmo em Portugal, o caso foi silenciado. Na imprensa portuguesa era surpreendente a ausência duma posição activa de denúncia das violações flagrantes dos mais elementares direitos do homem.

Segundo, porque em regra e em relação à África, só quando as barbaridades atingem enormes proporções é que elas são notícia.

Terceiro, porque a diplomacia dos interesses continua a ter muita força.

DW África: Será preciso uma Comissão da Verdade do 27 de maio de 1977 para chegar a uma verdadeira reconciliação em Angola?

DM: Tenho muitas dúvidas que assim possa acontecer 35 anos depois dos acontecimentos, quando muitos dos principais actores já faleceram ou abandonaram a vida política, uma tal comissão não me parece ser possível, nem importante.

Nesta altura, afigura-se mais sensata e oportuna uma acção que envolva dois aspectos:

Primeiro: o esclarecimento e o assumir de responsabilidades pelo próprio MPLA.

Segundo e principalmente: que se faça uma busca e a entrega das ossadas dos mortos para que as famílias possam fazer o luto da sua dor.

Autor: João Carlos
Edição: Johannes Beck