O "coração da redação" bate mais forte na hora da despedida
26 de dezembro de 2020"Quem quer café, quem quer chá?" Uma frase que muitos se habituaram a ouvir bem cedo na redação, acompanhada de bolos, boa disposição e uma palavra amiga. Porque a generosidade da Beatriz entrava na redação logo pela manhã, reconfortante como o cheiro de pão quente.
"A Beatriz tem aquele dom de melhorar os nossos dias, todos os dias sem exceção. Seja com o bom dia acompanhado daquela leveza que contagia toda a gente, ou com um gesto que pode parecer muito simples, mas que para nós é muito especial, que é quando ela traz um pãozinho de leite para quem está a trabalhar na DW desde madrugada", lembra Maria João Pinto.
"Vou sentir falta, de manhã, de levar um café ou um bolinho", confessa "a nossa kolega", como também é conhecida na redação Português para África. "É uma amiga com A grande. Todos aprendemos muito com ela ao longo destes anos. Ficamos felizes porque sabemos que vai para uma nova fase, de descanso merecido, novas aventuras, mas também ficamos tristes porque a DW sem a nossa kolega não será mais a mesma", lamenta Maria João, que não é a única com o coração dividido por estes dias.
Também Nádia Issufo já sente saudades da "mãe" de todos os colegas. "É um amor de pessoa. Vivo cá na Alemanha há cerca de 14 anos e a única pessoa que para mim é como uma mãe é a Beatriz. Ela cuida, ensina, dá carinho, é meiga, é tudo de bom. E ela é assim com toda a redação", destaca.
Já para não falar das muitas gargalhadas e da alegria contagiante de Beatriz. "É só boa disposição. Com a saída da Beatriz, desconfio que vamos morrer um pouco", diz a jornalista moçambicana. "Mas fico feliz porque a kolega, como ela nos chama, vai poder txilar e descansar mais!"
Regresso a África através da DW
Descanso que chega agora, depois de 32 anos na Deutsche Welle, onde durante muito tempo foi o principal elo de ligação entre a redação e os ouvintes e leitores.
Beatriz Brücken tinha 10 anos quando deixou Portugal para viver em Angola, onde ficou até à independência. Voltou para Lisboa em 1974, com muitas recordações e saudades de Luanda na bagagem.
Em 1986, emigrou para a Alemanha e África volta a entrar na sua vida. "Foi um presente que alguém me deu ou uma grande oportunidade de voltar outra vez, por outras palavras, a África", diz Beatriz com a voz embargada, como acontece cada vez que recorda Angola.
"Quando comecei a trabalhar na DW, alguns colegas que vinham de África diziam: tu estiveste em Angola. Por causa da pronúncia. Eu lamento e tenho pena porque já perdi uma grande parte dessa pronúncia. Foi a única coisa que trouxe de Angola."
Beatriz recorda-se bem do seu primeiro dia de trabalho na DW. "Lembro-me, estava meio com medo. Foi em abril de 1988. E lembro-me de alguns colegas, agora já não está lá nenhum. O último que fechou a porta, e que estava lá comigo, era o nosso colega Rocha."
"A Beatriz é uma pessoa muito aberta, muito divertida", recorda António Rocha, que foi vice-chefe da redação até 2019 e trabalhou mais de 30 anos com a Beatriz. "De vez em quando, quando tínhamos aquele stress no trabalho, a Beatriz chegava com uma história, uma piada ou uma notícia que ouviu e era um momento relaxante para todos."
"Tínhamos uma equipa muito sólida, muito solidária na altura, que era a malta dos africanos - nomeadamente o Juvenal Rodrigues, o Pedro Neto, o Gil Guimarães. E a Beatriz queria ter filhos, mas parece que não estava a conseguir. Então, surgiu o pau de Cabinda. E ela deve saber a história do pau de Cabinda…", recorda Rocha, com o riso maroto de quem partilhou muitos episódios e peripécias de outrora.
Tal como António Rocha, também Cristina Krippahl, outra colega de trabalho e amiga "de décadas", só guarda boas memórias dos muitos anos de convívio com a Beatriz. "A Beatriz sempre foi a Beatriz. É uma pessoa na qual todos os colegas sempre puderam confiar, sempre teve um ouvido aberto para os colegas, sempre tentou animar e encorajar os colegas. Acho que não há ninguém, em toda a Deutsche Welle, entre todos os 3.000 colaboradores da DW, que possa encontrar alguma coisa negativa para dizer. Duvido!"
"O coração da redação"
"A Beatriz não aparece nas nossas emissões, mas ela faz parte do coração da nossa redação. E como o coração, que pode não se ver à primeira vista, ela esteve sempre presente, a fazer a redação funcionar e sem ela não seríamos o que somos", assegura Guilherme Correia da Silva.
Além disso, diz o atual número dois da redação, "a maneira que a Beatriz tem de ver a vida, apesar das adversidades", é algo que o fascina, "porque trazia sempre um raio de sol mesmo nos dias mais cinzentos".
"É o bálsamo da nossa redação", concorda Cristiane Vieira Teixeira, que vai sentir muitas saudades do lado humano que a Beatriz trazia à redação. "É aquela colega que te dá um abraço nos dias mais difíceis. Entrar na sala da Beatriz era ter a certeza que havia um chocolate ou um biscoito à tua espera, um chá e palavras de conforto e de carinho."
Ouvintes de "olhos molhados"
Beatriz Brücken também trabalhou alguns anos como assistente de produção na redação Português para África. Ia com os colegas para o estúdio, contactava os correspondentes e escolhia músicas para os programas. "Tive muita pena de acabar esse trabalho por causa do contacto com os colegas no estúdio", recorda.
Depois começou o contacto com os ouvintes. "No princípio eram as cartas, não havia e-mails. As cartas, os selos, a caligrafia… o contacto era mais pessoal", conta Beatriz.
"A Beatriz tem um cuidado especial com os ouvintes", elogia o atual chefe da redação, Johannes Beck. "Ela sempre respondeu com muito cuidado e com muito carinho às notícias dos ouvintes, às cartas que eles escrevem e com alguns até desenvolveu uma amizade à distância ao longo dos tantos anos que ela fez este serviço aqui na DW."
"Desde que entrei nesta redação, há quase 15 anos, ela sempre esteve aqui e é tão difícil imaginar a redação sem a Beatriz, como foi e continua a ser difícil imaginar a redação sem o António Rocha", que se reformou em 2019, diz Johannes Beck.
E a DW já confirmou que há pelo menos um ouvinte na Guiné-Bissau com uma lágrima no canto do olho. "Ela vai deixar-nos saudades", afirma o desolado Lafu Balde. "Sempre prestou um bom serviço à rádio. Mas a vida não acaba aqui. Vou sempre tentar entrar em contacto com ela."
"Um ouvinte muito especial, como todos sabem, é o Lafu Balde, que está sempre em contacto connosco", lembra Beatriz Brücken.
"Uma kota fixe"
Episódios que a tenham marcado em mais de 30 anos na DW? "O ambiente que tenho com os meus colegas, que é cinco estrelas. A nossa camaradagem, quando íamos à cantina. Era só risos, era uma alegria!", responde Beatriz. "Ou quando vinham novos estagiários. Sou a mãe, quase!"
"Um episódio muito engraçado, e não há muito tempo, foi quando fui buscar o nosso colega Borralho ao comboio. Lá vinha ele, passo a passo, com a sua mochila, como se nada fosse. E eu perguntei-lhe: pô, Borralho, tu és tão viajado e agora a tua colega tem de te vir buscar ao comboio?", recorda.
"A Beatriz é uma kota fixe – é assim que nós tratamos os mais velhos aqui em Angola", explica Borralho Ndomba, que estagiou na redação em Bona, em 2019. "Também foi uma boa mãe para mim quando estive aí na Alemanha. Sempre cuidou bem de mim e acredito que tenha cuidado também de outro pessoal que passou na redação. E é assim que ela cuida dos colegas, é uma pessoa amável", elogia o correspondente em Luanda.
"A kota Beatriz é uma pessoa excecional e uma figura indelével da nossa redação", concorda Braima Darame. "Tem um coração enorme, recebe todo o mundo como se fosse um familiar." O jornalista guineense lembra-se como se fosse hoje da primeira vez que se cruzou com Beatriz na DW. "Eu vinha para a formação de correspondente na altura, ela chamou-me logo colega e eu senti-me tão à vontade. Esta é uma amizade que vai continuar para o resto da vida", garante.
Também o colega Thiago Melo se recorda muito bem do seu primeiro dia na redação. "Foi ela que me recebeu e me apresentou aos colegas. Sempre nos tratou com muito carinho e claro que nos vamos lembrar dela exatamente assim, porque afinal de contas o carinho, o respeito, o companheirismo e a amizade que ela nos ofereceu nesta redação com certeza vão ser as características que vamos lembrar sempre", diz.
Agora, os colegas terão de aprender a sobreviver na redação sem a Beatriz, como sugere Raquel Loureiro: "Não sei o que é estar na DW sem a Beatriz. E por muito que saiba que começa agora uma nova fase, cheia de coisas boas, também não posso mentir e dizer que não estamos tristes, porque estamos."
"Nem acredito que se vai embora! ", diz também Nuno de Noronha, que vai sentir muito a falta dos cafés, das brincadeiras e acima de tudo do "espírito sempre alegre" da kolega. E só espera que Beatriz aproveite esta nova fase da sua vida "como aquelas kotas alemãs que sabem tratar de si."
Projetos futuros: Regresso a Luanda?
Quanto a projetos futuros, Beatriz já tem pelo menos um na manga. "Há uma organização aqui na Alemanha que acolhe crianças de vários países, em especial de Angola. Vêm doentes, são aqui tratadas, ficam durante um tempo e depois regressam outra vez ao seu país. E isso, já há muito tempo, é o que gostaria de fazer. Se tiver sorte, lá vou eu outra vez: África, Angola", sonha já Beatriz.
"Esse vai ser o meu projeto. Gosto de trabalhar com os meus colegas, que são adultos, mas também gosto de crianças. E agora deixo os adultos e vou para as crianças!"
Borralho Ndomba sugere que Beatriz escreva um livro de memórias, com "todas aquelas histórias engraçadas que sempre nos contou", oferecendo-se desde já para escrever o prefácio. E deixa outro convite: "Estarei aqui à tua espera, para passares uma temporada aqui na banda, conhecer o teu antigo bairro, ver como mudou. Comemos um funge, um mufete, vamos conhecer as praias lindas de Angola. Sucesso e tenha boa saúde, minha kota! Te amo!"
"Agora vamos ter muito mais tempo para nos encontrarmos e tomar o nosso cafezinho e comer o nosso pastel de nata!", convida também Cristina Krippahl.
Na hora do adeus, ninguém se quer despedir, mas todos se desfazem em elogios à colega mais querida da redação. "A nossa 'kota Bia' vai fazer muita falta e deixar muita saudade", sublinha António de Deus.
"Eu vou-me embora e não vou", promete Beatriz, não sem antes deixar uma mensagem "aos seus fãs", em especial em África. "Eu vou partir, mas eles vão ficar sempre comigo!"