Migrantes de África seguem rota mais perigosa para a Europa
12 de outubro de 2020Em Fuerteventura, a segunda maior ilha das Canárias, o mar está calmo, mas Abdul Kamara, da Guiné-Conacri, recorda-se de como as águas estavam agitadas no dia em que chegou ao arquipélago espanhol. O jovem esteve muito perto de não sobreviver à jornada de três dias num barco insuflável, depois de partir de Marrocos, no início do Verão.
"De repente, ouvimos o ar a vazar do barco. Naquele momento, todos morreram de medo. Eu tive a sensação de que aquele poderia ser, de facto, o fim. Pensava na minha irmã mais nova, que teria de viver sem mim. Pensei nalguns amigos. Eu fiquei em estado de choque, já não conseguia mover-me", descreve à DW.
Travessia mais perigosa do mundo
Os migrantes que estavam naquele barco conseguiram parar a fuga de ar e chegaram a Fuerteventura. Abdul Kamara é um dos cerca de 5 mil migrantes africanos que entraram nas Ilhas Canárias desde o início deste ano - um aumento de mais de 600% em relação a 2019.
A rota de migração entre África e o arquipélago espanhol foi usada frequentemente no passado. Dezenas de milhares de migrantes chegaram às ilhas em meados dos anos 2000.
Desde então, poucos barcos ousaram fazer a viagem na travessia que é considerada a mais perigosa do mundo. De acordo com organizações humanitárias, um em cada 16 migrantes morre durante o trajeto.
Pandemia piorou situação
Muitos observadores ainda estão perplexos sobre qual a razão para esta rota estar de novo a ser utilizada com tanta frequência.
Bram Frouws, do Mixed Migration Center, um instituto de investigação independente com sede em Genebra, acredita que a pandemia de Covid-19 é o principal motivo da retoma desta rota migratória.
"O impacto socioeconómico da pandemia está a aumentar o desejo e a necessidade das pessoas migrarem. Mas, ao mesmo tempo, restringe os recursos, com as pessoas a ter menos dinheiro para migrar, e ambém aumenta as restrições de mobilidade", explica à DW.
"Há, portanto, duas forças opostas e está pouco claro como essas dinâmicas estão a interagir neste momento", conclui Frouws.
Acordos alteram rotas migratórias
Países europeus chegaram a vários acordos com nações de trânsito em África, como Níger e Líbia, e exigiram que os Estados africanos façam esforços para evitar que os migrantes passem pelos seus territórios muito antes de chegarem à costa.
Em troca, a União Europeia comprometeu-se a aumentar os pagamentos de apoios ao desenvolvimento. Entretanto, este tipo de negócio geralmente apenas faz com que as rotas de migração mudem. No caso das Ilhas Canárias, é razoável sugerir que Espanha foi vítima da sua própria diplomacia migratória.
"Vimos isso acontecer com Marrocos e Espanha no ano passado. Houve um aumento de migração de Marrocos para Espanha e, quase uma semana depois, houve um outro pacote de 15 milhões de euros para apoiar Marrocos, como parte da chamada cooperação de migração", diz Bram Frouws.
Marrocos cumpriu a sua parte do acordo e expulsou os migrantes de áreas próximas à costa. As chegadas a Espanha continental caíram em mais de 4 mil no primeiro semestre deste ano.
Como consequência, as rotas de migração começaram a mudar. Os migrantes passaram a embarcar no sul de Marrocos e a partir para as Ilhas Canárias, em vez do continente.
Maior movimento desde a Primavera Árabe
Segundo analistas, este é o prenúncio de um novo movimento migratório massivo em direção à Europa. Mais de 7 mil tunisinos cruzaram o mar Mediterrâneo desde o início do ano - o maior número desde a Primavera Árabe, em 2011. Na vizinha Líbia, os contrabandistas tornaram-se agora clientes de outros contrabandistas.
Matt Herbert, da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, com sede em Genebra, diz que as consequências do impacto económico gerado pelo novo coronavírus já estão a sentir-se no norte de África.
"Acho que esta é a vanguarda da onda de migração irregular impulsionada pela Covid-19. Ainda não houve tempo suficiente para que os migrantes de África Ocidental e Central e do Corno de África comecem a chegar ao norte do continente para seguir as rotas migratórias até à Europa. Mas acredito que isso vai acontecer nos próximos seis a doze meses", analisa.
Uma questão de preço
Abdul Karim Kamara não quer ficar em Fuerteventura. Em breve, espera ser transferido para um campo no continente espanhol com os outros migrantes. A partir daí, quer deslocar-se mais para norte.
Como muitos outros migrantes, Kamara fez um "desvio" para as Ilhas Canárias por uma razão muito pragmática: dinheiro.
Durante muito tempo, não viu perspetivas para o futuro no seu país de origem, a Guiné-Conacri. Depois descobriu que contrabandistas na rota do Atlântico estavam a oferecer lugares em barcos de borracha por cerca de 800 euros. No passado, podia custar mais de 2 mil euros. A oferta foi aparentemente demasiado boa para deixar passar.