Golpes de Estado: "Há um retrocesso nos ganhos democráticos"
25 de janeiro de 2022Em menos de 18 meses aconteceram três golpes de Estado na África Ocidental: Mali, Guiné-Conacri e agora no Burkina Faso. Esta segunda-feira, (24.01), os militares burquinabês assumiram o poder e dissolveram o Governo e o Parlamento.
O Presidente do país, Roch Kaboré, que ainda está em lugar incerto, demitiu-se do cargo em carta escrita à mão e divulgada pela televisão estatal.
Para Carlos Lopes, Alto Representante de África junto da União Europeia, "as armas que são compradas para combater os terroristas estão a ser usadas para derrubar regimes supostamente democráticos".
O também professor da Escola de Governação Pública Nelson Mandela, na Cidade do Cabo, diz que as estratégias geopolíticas de países não africanos, que lutam por mais protagonismo em África, são um dos fatores de desestabilização de vários países ricos em recursos naturais, e as organizações subregionais manifestam-se incapazes de repor a normalidade democrática.
DW África: O que estará a motivar mais golpes de Estado na África Ocidental?
Carlos Lopes (CL): Eu acho que há aqui dois fenómenos: um fenómeno que tem caraterísticas imediatas e outro que é mais estrutural. No imediato temos a questão do terrorismo, que está, de facto, a decalcar caraterísticas de grande volatilidade e que está a demostrar as fraquezas dos aparelhos securitários. E está também muito marcado por guerras de influência porque há uma série de protagonistas, não africanos, que estão a aproveitar as crises africanas para se posicionarem em termos geoestratégicos. É o caso dos países do Golfo, é o caso da Turquia e da Rússia, ou seja, novos atores no quadro geoestratégico. E claro, tudo isto foi facilitado pela proliferação de armas que resultou da queda do regime de Kadafi.
DW África: Mas também, nos últimos tempos, nota-se uma certa pressão e contestação popular nestes países...
CL: No imediato há também um outro elemento, que é preciso tomar em conta, que tem que ver com a pandemia que criou uma pauperização muito grande da situação social das pessoas e, portanto, leva a que os governos estejam de facto sob pressão e que haja muita volatilidade política e muita pressão de rua.
DW África: E em termos estruturais?
CL: Em termos estruturais, acho que há uma desintegração do tecido económico de certas regiões de África, nomeadamente do Sahel, de uma série de países que têm populações pastoralistas. O pastoralismo tem grandes dificuldades em integrar-se nos novos quadros da globalização e leva, assim, a que essas pessoas - que dependiam antes de um modo de vida que já não pode ser continuado - estejam muito tentadas ou para a emigração ou para outros tipos de atividades, muitas delas ilícitas. Desde o contrabando, tráfico de pessoas, de droga, até às influências do terrorismo. E, infelizmente, tudo isto também é resultado das mudanças climáticas, dessa mudança de vida por causa do stress do meio ambiental.
DW África: E como é que as organizações subregionais estão a lidar com esta situação?
CL: Acho que, do ponto de vista político, a CEDEAO, em particular, está a lidar muito mal com estes problemas porque tem sempre as mesmas receitas. Receitas que, ainda por cima, não são consistentes, mudam conforme os figurinos e as personalidades e mostram muitas vezes que as pessoas e as alianças são mais importantes do que os princípios. Todas essas contradições acabam por pôr em causa o fundamento do direito internacional mais praticado, que é a subsidiariedade - passar a responsabilidade em matéria de paz e segurança àqueles que são mais próximos do terreno geográfico - e que, infelizmente, está ser mal usada não só pela CEDEAO mas também por outras instituições africanas, que em vez de estarem mais próximas acabam por utilizar essa proximidade mais para guerras de influências deles próprios e para a proteção dos seus próprios interesses.
DW África: E acha que os interesses dos países do Ocidente se sobrepõem aos interesses dos africanos?
CL: Não acho que haja uma sobreposição mas acho, sim, que há muitos interesses em jogo. Isto tudo faz com que os militares sejam tentados a fazer golpes em todos estes países. São equipados para lutar contra o terrorismo, têm estas caraterísticas todas estruturais que não são resolvidas, e [têm] um discurso populista fácil de dizer que se é contra isto ou contra aquilo. Uns dizem que são contra o terceiro mandato, já outros dizem que são contra a corrupção. Ou seja, são discursos muito fáceis, que não vão ao âmago da questão. Acho que é isso que está por detrás desta proliferação de golpes. O exemplo de um acaba por passar para o outro. Acho que estes protagonistas externos não estão a ajudar mas sim a agravar.
DW África: Perante esta situação, considera que há um retrocesso nos ganhos democráticos em África?
CL: Não tenho a mínima dúvida de que há um retrocesso. Aliás, inclusive nos indicadores de governação. O Índice Mo Ibrahim, que faz a computação de 30 categorias de governação, tinha estado a [registar] progressos durante quase uma década e meia e, nos últimos três anos, tem vindo a registar baixas de qualidade de governação até em países que estavam extremamente estáveis do ponto de vista socioeconómico ou dos direitos políticos e sociais.
Temos de repensar se o modelo democrático assenta apenas em fazer eleições ou se é muito mais do que isso. Porque está-se a usar um pouco as eleições como desculpa para se poder, de uma forma muitas vezes manipulada, chegar ao poder e legitimar-se por se chamar processo democrático, quando o processo democrático não é só eleições e, ainda por cima, são muito coxas. O processo democrático é de facto todo o espírito cívico de engajamento da capacidade da sociedade poder se exprimir e ter mais oportunidades de escolha e não menos. O que está a acontecer é que estamos a ver o surgimento de regimes cada vez mais autoritários que usam o facto de terem sido eleitos para desculpar o seu autoritarismo.