Gociante Patissa defende revisão da política linguística
14 de março de 2017Autor de vários livros, entre poesia, crónicas e contos, preocupa-se também com a valorização das línguas angolanas. E dá especial atenção ao umbundo, sua língua materna. A língua oficial em Angola é o português, adotada como tal a partir da independência, em 1975. Entretanto, a seu ver, desde então as outras línguas foram sendo marginalizadas. A DW África conversou com Gociante Patissa sobre o assunto.
DW África: É linguista e o seu primeiro prémio deveu-se ao seu empenho na divulgação do Umbundo. Alia sempre a sua formação às suas obras?
Gociante Patissa (GP): É inevitável por um lado. Por outro lado, sou um ser insatisfeito em relação à questão da política linguística em Angola. Penso que criamos um monstro chamado língua portuguesa e descuramos do resto. E às vezes compreendo, penso que houve uma necessidade ao longo dessas décadas de conseguir um equilíbrio enquanto nação, fazendo desse conjunto de nações uma só, já que por detrás da língua há outros fatores. Mas é altura de repensarmos, há pessoas que vão nascer, crescer e morrer sem lhes fazer falta a língua portuguesa. Então, uso as técnicas científicas para ao meu nível promover a minha língua, o que é difícil porque temos ainda o problema da dualidade de grafias. Não entendo porque uma língua tem de ter duas grafias diferentes, vamos falar da colonização e da igreja, mas as línguas são anteriores a colonização e a igreja. O católico e o protestante falam a mesma coisa, mas quando chega a hora de codificar codificam diferente. Isso depois tem como consequência o desencorajamento da produção em línguas nacionais, como é que vão ler?
DW África: Ainda sobre a política linguística em Angola, no que se refere a promoção das outras línguas nacionais o que gostaria de ver melhorado?
GP: Muita coisa, primeiro é a questão da política do Estado e o Estado tem de assumir isso, mais do que tem feito até agora. Sei que há um estudo de harmonização. Em 2012 fui entrevistado por uma jornalista inglesa e soube através dela que tinha sido encomendado um estudo a um académico africano para a harmonização ortográfica das línguas de matriz Bantu. Até hoje, volvidos 20 anos, não se sabe pelo menos o ponto de situação. Depois é a maneira como se olha [para elas], o status secundário que é atribuído as línguas nacionais. O jornalismo, por exemplo, é feito em língua portuguesa, mas quando se fala em jornalismo em línguas nacionais na verdade não é jornalismo, é tradução a quente do texto em português e as deturpações que disso advém. Portanto, é preciso dar as línguas os estatutos que elas merecem. Tem de se fazer muita coisa, estou a reclamar do Estado porque ele é o decisor e quem superintende ao nível macro as políticas. Mas depois há também há questão do cidadão, por exemplo, na rua, eu falo muito bem o umbundo melhor até que o português, se eu saudar uma varredora de rua [em umbundo] ela vai-me automaticamente responder em português, porque ela interpreta que lhe estou a desqualificar. Naturalmente há algumas províncias que dão algumas expetativas, eu gosto de ir ao Humabo, lá há menos complexos do que há em Benguela e em outras províncias, mas ainda assim não satisfaz. É preciso dar um suporte a isso. Por dia a televisão tem cerca de meia hora de noticiário em umbundo, o que é meia hora? É nada.
DW África: No seu percurso houve também uma passagem pela rádio, aliás, o que também transportou para a sua escrita. Gosta da forma como se faz rádio em Angola?
GP: Não, não gosto porque tenho estado a ler muito e leio um autor cubano que diz que a rádio deve transmitir a vivência da comunidade. E atualmente penso que o conceito de rádio é um pouco elitista e de exclusão, faz-se muito o trabalho de estúdio, fala o artista, fala o empresário, fala o comerciante, fala o governante e às vezes fala o académico, [mas] o cidadão comum não fala para a rádio, a não ser que tenha saldo para o telefone ou que tenha cometido um crime e queira prestar contas a sociedade. Eu gostaria de ter uma rádio mais virada para a integração, para a promoção cultural, uma rádio onde a pauta informativa não relegasse para o fim do noticiário, por exemplo um evento cultural. Temos rádios especializadas no desporto, poderíamos pensar em rádios especializadas na cultura. Já há um jornal, infelizmente é quinzenal e tem uma circulação bastante complexa e limitada. Gostaria de uma rádio, mas não banal, que saiba ser o rosto da comunidade.
DW África: Há no seu país uma restrição considerável no que diz respeito a abertura de rádios. Com vê isso no contexto do acesso a informação e da liberdade de imprensa?
GP: Deixei de fazer jornalismo há alguns anos, então não estou tão inteirado sob o ponto de vista dos "dossiers" do assunto e é um pouco arriscado tecer comentários mais profundos quando a gente não está tão familiarizada com os assuntos mais recentes da área. Mas eu acho que é complexo, pelos debates que vou acompanhando o quadro que se avizinha não é muito bom porque primeiro mata a figura do freelancer. Doravante fazer jornalismo significa pertencer a uma empresa, isso faz com que a subserviência seja ainda maior, porque se você for minha diretora e eu refilar consigo automaticamente eu deixo de fazer jornalismo. E outra coisa, havia uma esperança de abertura de rádios comunitárias e penso que no atual figurino as rádios ainda não forma contempladas. Então, o que vai acontecer, vamos ter uma relação muito tensa entre o profissional as entidades empregadoras, penso que não é um quadro muito bom. Era bom ouvir o outro lado também, temos estado a ouvir o outro lado das pessoas que são contra o espírito da nova lei, então era bom ouvirmos o outro lado e percebermos os seus fundamentos. Mas penso que o quadro que se avizinha não é de todo próspero.
DW África: Tem um blog ou dois?
GP: Tenho dois, o Angodebates, que generalista e o Ombembwa, palavra umbundo que significa paz. Inicialmente [este último] era para ter mais conteúdo de natureza linguística, mas não tenho tido muito tempo para fazer pesquisa, então é mais passivo que o Angodebates.
DW África: Os seus blogues são uma plataforma para o seu mundo literário?
GP: Sim, mas agora há uma inversão, quando começou o maior número de leitores era de Portugal, Brasil e só depois de Angola. Depois houve uma inversão, penso que há duas variáveis: uma é que houve melhorias em Angola no acesso a internet, não podemos negar isso, e por outro lado penso que passou a haver também maior interesse para o consumo interno dos blogues. E é interessante porque essa inversão surge numa altura em que já há o Facebook e outras plataformas que poderiam distrair. E os meus blogues, tal como o Facebook acabam também por divulgar a minha obra em quanto escritor. Vou lá colocar fragmentos, há contos que na verdade evoluem de crónicas, é uma estrada de dois sentidos.
DW África: Homem de muitas paixões, já vi que não se separa da sua máquina fotográfica. Fale-nos desse mundo também...
GP: Vivo profissionalmente numa área que não gosto, acho que nunca gostei e nunca vou gostar. Respeito e tenho uma atitude profissional, mas se não faço arte eu expludo. Trabalho há quase dez anos na aviação, não é uma área que me apaixona, não sou hipócrita e não finjo que me agrada. Tenho bom emprego, mas em termos de natureza da atividade não é o que gostaria [de fazer]. E isso empurra-me com cada vez mais energia para aquilo que eu gosto. A minha ligação com a fotografia tem também a ver com a sobrevivência, quando aos 15 anos precisei de arranjar emprego para pagar os meus estudos na sétima classe fui bater a porta a uma casa de fotografia, penso que já havia uma relação. Então aprendi a fotografar, mas numa perspetiva mais comercial, mas ao longo desses anos sempre fui fazendo fotografia de autor e nos últimos tempos, com um pouco mais de recursos, fui evoluindo. Faço umas mais documentais e outras artísticas, é uma paixão muito grande. Acho que no futuro, na reforma, eu já a andar de bengala vou dedicar-me só a fotografia.