Fome no sul de Angola: "Não somos ouvidos"
4 de novembro de 2021Mais de 1,3 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar grave depois da pior seca das últimas quatro décadas, no sul de Angola. A situação tende a piorar: até março do próximo ano, esse número poderá subir para 1,58 milhões de pessoas, segundo uma projeção da iniciativa IPC, que monitoriza a situação no terreno.
Em entrevista à DW África, o coordenador da organização não-governamental Omunga diz que é preciso agir já e declarar o estado de emergência. Mas o Executivo continua a ignorar os apelos da sociedade, refere João Malavindele, acrescentando que essa não é a única matéria em que o Governo tem feito ouvidos de mercador.
DW África: Como avalia a forma como o Executivo de João Lourenço tem lidado com o problema da seca no sul de Angola?
João Malavindele (JM): O Governo tem lidado com essa situação de forma muito leviana. A situação da seca e fome no sul de Angola merece muito mais do que promover simples campanhas de doação de comida. Este é um problema cíclico. O problema da falta de água já deveria ter sido resolvido há bastante tempo, mas nunca houve um compromisso político sério para o mitigar.
Tudo o que foi feito até agora contra a seca é pouco. Devia-se pensar particularmente em intervenções a curto prazo, e, nesse sentido, uma das coisas que estamos a exigir, como sociedade civil, é que se declare o estado de emergência.
DW África: No seu entender, porque é que o Estado não o fez até aqui?
JM: É arrogância política. Não encontro outra palavra para o descrever. Considero que é arrogância, porque há elementos suficientes para [decretar o estado de emergência]. Na vizinha Namíbia, há situações menos graves, mas declarou-se o estado de emergência numa região. E a nossa situação é duas ou três vezes mais grave do que aquilo que se passou na Namíbia. Mesmo assim, apesar dos gritos de apelo que a sociedade civil vem fazendo, não somos ouvidos.
Há uma falta de sensibilidade em relação ao sofrimento das populações. Porque há instituições internacionais especializadas em questões humanitárias, e é isso que se precisa neste momento…
DW África: O estado de emergência seria uma forma de aumentar a ajuda...
JM: Claro, é uma forma de mobilizar as pessoas e as instituições para acudir àquela região sul. Neste momento já esgotaram as sementes, que eram o pouco que as pessoas tinham desde o ano passado. Deu-se cabo das sementes. E essas instituições só vão apoiar se o Governo acionar esse mecanismo do estado de emergência.
DW África: Para o próximo ano estão marcadas eleições em Angola. O voto dos jovens, que parecem cada vez mais insatisfeitos com a governação atual, poderá fazer pender a balança eleitoral?
JM: Acredito que sim, até porque a população angolana é maioritariamente jovem. É essa juventude que hoje se sente bastante insatisfeita. Muitos não veem os seus sonhos realizados, porque o próprio ambiente sócio-económico e político não lhes permite crescer de acordo com as suas capacidades. Esse tem sido um dos motivos que têm levado cada vez mais jovens a revoltarem-se com a situação que o país vive.
DW África: A alta taxa de desemprego é uma grande preocupação. O que se deve fazer para fomentar o emprego neste momento? O que está a falhar?
JM: O Estado deve preocupar-se nesta fase em criar políticas concretas para que os empresários - as pessoas que tenham iniciativas empresariais - possam desenvolver [as suas ideias]. Todo o cidadão que tenha uma ideia, que tenha um projeto, deve poder aceder a um crédito.
DW África: Já há uma nova lei do investimento privado. Não é suficiente? São necessárias mais medidas, nomeadamente ao nível do crédito, como afirma?
JM: Sim. O problema é que temos uma sociedade praticamente partidarizada. Às vezes, essa partidarização do Estado cria entraves. Ainda hoje, em muitos círculos, para ter acesso [a essas oportunidades], é preciso ser membro do partido ou ter uma ligação com o poder. […] Em Angola temos também outro grande problema: hoje em dia, quem tem poder financeiro para poder entrar numa parceria público-privada, por exemplo, são pessoas conotadas com a corrupção, devido ao seu passado. E essas pessoas estão com receio de assumir projetos que envolvam montantes avultados. Há o receio de, depois, a sociedade perguntar: 'onde é que essa pessoa foi ao dinheiro? Onde é que trabalhou para conseguir isso?'
Então, vivemos em Angola numa sociedade de muita desconfiança - desconfiança generalizada em relação a todos. Ninguém confia em ninguém. Estrategicamente, o próprio Estado, através do partido que governa, não tem sido capaz de poder, pelo menos, promover um espírito de reconciliação entre nós, os angolanos.
DW África: Neste momento, o Presidente João Lourenço terá motivos para estar preocupado com as eleições do próximo ano?
JM: Estamos a viver uma situação um pouco sui generis. O Presidente João Lourenço tem todos os motivos para se preocupar em relação ao fenómeno social que todos vivemos, mas, do ponto de vista político - até porque nos estamos a aproximar do período de pré-campanha - o MPLA é uma máquina em termos de destruição dos seus adversários e de tirar proveito dos recursos do Estado em seu benefício.
A DW África falou com João Malavindele em Berlim no âmbito de um encontro da Mesa Redonda das organizações não-governamentais alemãs que trabalham em Angola.