Cabo Verde se sente africano? Depende do ponto de vista
26 de janeiro de 2024Nos PALOP, há muito se diz que falta a Cabo Verde o sentimento de pertença a África. Os esforços regulares do arquipélago de se aproximar dos valores da União Europeia (UE) contribuem para acirrar os debates e aumentar os olhares de desconfiança de certos setores em África.
Esta semana, o antropólogo cabo-verdiano Manuel Brito-Semedo afirmou que as ilhas não são africanas e que o destino deste país não é África, pois a sua viragem é "toda para a Europa", incendiando as redes sociais.
Em entrevista á DW, o geógrafo José Maria Semedo diz que a visão polémica "não incomoda nem espanta", frisando que a questão é "discutível", dependendo de vários contextos. Mas um "país crioulo" é o termo que alguns preferem usar para justificar o sentimento cabo-verdiano.
DW África: Partilha da opinião do antropólogo Manuel Brito-Semedo?
José Maria Semedo (JMS): Cabo Verde fica em África, do ponto de vista geográfico não se pode discutir isso. Do ponto de vista antropológico, cultural, se a cultura cabo-verdiana se integra no contexto africano é uma questão discutível. São pontos de vista. E não é questão de partilhar ou não, que é coisa que não me incomoda nem me espanta. E não é a primeira pessoa que diz isso. Isso foi dito ao longo dos tempos. Claro que houve sempre cabo-verdianos que não se veem integrados na cultura da África de Oeste. Para mim, é normal, é uma leitura das coisas. Não é deplorável nem condenável, são pontos de vista no contexto da leitura da integração da cultura cabo-verdiana.
DW África: As bases que sustentam o argumento do antropólogo são sólidas?
JMS: Para mim, o problema é o seguinte: as chamadas 'ilhas macronésias' - Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde - são ilhas próximas do Velho Mundo. São ilhas que são integradas no património ibérico no século XV, durante a expansão. Açores, Madeira e Cabo Verde vão receber pessoas da Europa e de África. Estamos a construir culturas insulares, na fase da expansão.
DW África: Mas concorda que essas bases sustentam o argumento do antropólogo?
JMS: Não sustentam nada. O argumento é o seguinte: as pessoas têm o seu ponto de vista. Em Cabo Verde, como em todas as ilhas que estão no processo de expansão, constroem-se culturas híbridas que trazem o contributo dos colonizadores europeus e de várias culturas africanas. Em Cabo Verde há várias culturas africanas - mandinga, uolofe, fula e por aí em diante - e de vários países europeus. Certos antropólogos e historiadores enquadram a sua visão, a sua leitura de Cabo Verde nesse contexto da história, da antropologia, da política, etc. Ou seja, a resposta é que depende do contexto.
DW África: Nos PALOP, há décadas que se diz que Cabo Verde não tem um sentimento de pertença a África. Como cabo-verdiano, partilha deste olhar?
JMS: Os intelectuais afirmam coisas, mas será que todo o povo pensa assim? Esse é o grande problema. Nós, enquanto geógrafos, temos de analisar quem disse e em que contexto. É académico, é político, temos de ver tudo isso. Mas dou-lhe razão. Circula muito em Cabo Verde essa ideia de que o país não é africano, está longe de África, pensa diferente, se compararmos à África de Oeste, que é um território essencialmente islâmico. Os hábitos, os costumes, os padrões, o modo de vida são muito influenciados pelo islamismo e por tradições milenares. Em Cabo Verde, é diferente: tem uma cultura de dominância cristã, uma cristandade insular, e não é milenar. É uma cultura que se construiu há menos de mil anos.
DW África: Este pensamento que predomina nos PALOP e em Cabo Verde vai muito de encontro ao pensamento do antropólogo Manuel Brito-Semedo, quando ele diz que as ilhas até geograficamente são em forma de meia lua e não estão viradas para o continente africano...
JMS: A meia lua é a estrutura das ilhas, são alinhamentos tectónicos. Vamos até à geologia. Um alinhamento é Sal, Boavista, Maio, Santiago. Há outro alinhamento que é Boavista, São Nicolau, Ilhéu Branco, Ilhéu Raso, São Vicente, Santo Antão. É um alinhamento que não é em meia lua. Antigamente até se dizia ferradura. Isso não tem nada a ver com África.