Angola: Urge rever a narrativa do 27 de Maio
3 de setembro de 2020A luta pela independência de Angola envolveu muitos atores políticos e cidadãos anónimos, que deram o seu contributo para a libertação do país do jugo colonial. Um deles é Manuel Vidigal, cardiologista angolano, nascido em Goa, a viver em Luanda, e que fez parte do Comité de Médicos e Enfermeiros integrado nas fileiras do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Na altura, participou nas comissões populares de bairros e de apoio a muitos dos centros de instrução revolucionária (os chamados CIR). Vidigal concorda que se deve enaltecer o papel dos comandantes e dos guerrilheiros que deram o seu contributo para a luta de libertação de Angola, nomeadamente na Primeira Região Político-Militar do Movimento pela Libertação de Angola (MPLA).
Lamenta, no entanto, o que diz ser a maior tragédia do partido, na altura dirigido por António Agostinho Neto, e que mudou o rumo da História do país e que custou a vida a numerosos guerrilheiros: o 27 de Maio de 1977: "Desde o camarada "Monstro Imortal” (Jacob Caetano), Nito Alves, Sianouke, Ho Chi Min, o Bakaloff, Bagé, todos eles são comandantes da Primeira Região. O Kiluanje acho que ainda está vivo”.
30 mil angolanos chacinados
As represálias arrastaram-se por dois anos. Segundo a Amnistia Internacional, foram mortas cerca de 30 mil pessoas, maioritariamente jovens.
Manuel Vidigal nega que se tenha tratado de uma tentativa de golpe de Estado: "Não é essa a verdade da história e nós continuamos a esforçar-nos para que a história contada, a versão dos vencedores, a declaração do bureau político do MPLA, possam realmente ser contrariadas.”
Para este médico, os visados saíram à rua para reivindicar a reposição da justiça depois da expulsão do Comité Central de Nito Alves e de José Van Dunem, dirigentes do MPLA.
"Não havia razões nenhumas para aquilo que aconteceu e que foi justificado dizendo que eram fracionistas, uma fação organizada do MPLA”, defende. "Mas a Primeira Região, acho que foi sempre mal entendida, porque, como viveu afastada da direção do MPLA, era natural as desconfianças que existiam entre o interior e o exterior”, diz.
Carlos Cavaleiro, também formado em medicina, disponibilizou-se a colaborar com o MPLA quando regressou a Angola em setembro de 1974, após ter concluído os seus estudos. Foi enviado para a Primeira Região, onde conheceu muitos responsáveis políticos e militares, entre os quais Nito Alves. "Havia uma comissão política composta por civis e uma organização das mulheres, a OMA. Havia bastante povo nas bases guerrilheiras. O problema mais grave era a inexistência de ligação com a retaguarda, ou seja, com Brazaville, o que impediu que qualquer logística funcionasse. Acabaram-se as munições, as armas, a alimentação, etc. Foram entregues a si próprios durante quase uma década”, recorda.
Combate desigual
No entanto, acrescenta, havia espírito de resistência porque o objetivo traçado com a independência era a destruição do sistema colonialista e a "construção de uma nova Angola". A correlação de forças dentro do MPLA, refere, levou depois à "horrenda onda de opressão" que recaiu "sobre todos os que se opunham ao poder instituído".
Outro lendário, Eduardo Valentim, desapareceu um mês antes de maio de 1977. Valentim foi preso político no Tarrafal, em Cabo Verde. Depois da revolução portuguesa em 25 de Abril de 1974, foi transferido para a prisão de São Paulo, em Luanda.
Segundo a irmã, Maria Isabel Valentim, Eduardo pertenceu ao Comité Regional de Luanda antes da independência. Apesar da vigilância da polícia política portuguesa (PIDE), Valentim, que nunca foi militar, e outros companheiros, tudo fizeram para ajudar a Primeira Região com o envio de alimentos, roupa e medicamentos.
"Já na altura, ele estudava e trabalhava, tirava o seu salário para compras. Eles deixaram o núcleo da Primeira Região, onde as pessoas estavam a morrer de fome. Não tinham nada. Porque a PIDE e o exército português estavam muito bem organizados e não deixavam chegar os abastecimentos. Eles já estavam ali praticamente encurralados há anos, onde não recebiam nada da direção [do partido]”, lamenta Maria Isabel.
O irmão, conhecido por Juca, acabou por ser vítima do próprio MPLA, diz, nunca tendo recebido o reconhecimento pelo papel que ele e os companheiros desempenharam.
O MPLA "usa e deita fora" as pessoas
"Isso é muito normal no MPLA. Como dizia um antigo chefe meu, o MPLA utiliza as pessoas e depois descarta-as. As pessoas são descartáveis. Usa e atira para o lixo. Foi o que fez com eles”, diz Maria Isabel Valentim.
A familiar de Juca Valentim recorda o caso de Luís Carlos Nunes, professor da Faculdade de Economia de Angola, preso por ter dado aulas a Nito Alves, seu primo e então ministro do Interior. Conta que o professor foi torturado, tendo saído da cadeia com mazelas.
Quarenta e cinco anos depois da independência e 43 depois dos acontecimentos do 27 de maio, Manuel Vidigal diz terem sido já homenageados alguns daqueles lendários, antigos combatentes, entre os quais o comandante João Jacob Caetano, que em 1977 era o chefe de Estado Maior das Forças Armadas.
"Foi agora, recentemente, condecorado pelo Presidente João Lourenço. Alguns dos outros, até mesmo o Nito Alves, foram a título póstumo galardoados como generais do MPLA", recorda.
Mas Vidigal diz que "na verdade, o que se nota é que se tentou, pelo menos, ao longo destes últimos 40 anos fazer tábua rasa praticamente de toda essa Primeira Região, que foi uma região muito sofrida, onde os seus combatentes passaram por dificuldades que não são fáceis de ser entendidas”.
Apelo para o apuramento de responsabilidades
Vidigal acredita que o MPLA deve fazer uma "verdadeira auto-crítica” em nome da paz e da reconciliação, pedir desculpas e tomar em consideração a proposta lançada pelos sobreviventes e familiares para a criação de uma comissão da verdade, a fim de investigar quem são os responsáveis pelos crimes cometidos.
Os angolanos ouvidos pela DW África consideram que o novo ciclo político de maior abertura em Angola é propício a semelhante iniciativa. Manuel Vidigal deixa um aviso: "Se não existir vontade política para a entrega, por exemplo, dos restos mortais, dizer quem matou e como mataram, julgo que as pessoas têm todo o direito de levar isto às instâncias de justiça internacional, porque este tipo de crimes não prescreve”.