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Que lugar ocupa a sociedade civil na era de João Lourenço?

30 de outubro de 2018

Com a nova Presidência, a sociedade civil angolana tem de deixar de "atirar pedras" e passar a propostas concretas, defende o responsável do Instituto Mosaiko. Mas Júlio Candeiro questiona se ela está preparada para tal.

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João Lourenço, Presidente de AngolaFoto: DW/C.V. Teixeira

O diretor da organização não-governamental (ONG) angolana Mosaiko - Instituto para a Cidadania esteve recentemente em Berlim, onde participou num encontro que teve como tema "Terra, segurança alimentar e direitos humanos em Angola". No evento promovido pelas ONG alemãs Brot für die Welt (Pão para o Mundo) e Misereor, Júlio Gonçalves Candeiro falou sobre a atuação da sociedade civil angolana e seus desafios. A DW África teve a oportunidade de lhe colocar algumas questões sobre este setor.

DW África: O que mudou para a sociedade civil angolana com João Lourenço no poder?

Júlio Candeiro (JC): Penso que ainda é muito cedo para avaliar, de uma forma global, o que mudou na sociedade civil. O que é importante destacar é que mudou o contexto. Pelo menos, pelos sinais que temos vindo a ver, há, do ponto de vista do discurso formal, um convite à sociedade civil, reiterado pelo Presidente João Lourenço. E o que muda para a sociedade civil é esta postura, de estar ou não preparada para responder a este convite de forma qualificada, porque é preciso fazer a mudança do "atira a pedra" para um contexto de sociedade civil que venha com propostas concretas, com dados, com alternativas às formas de atuação das organizações do Estado, de uma forma geral.

Que lugar ocupa a sociedade civil na era de João Lourenço?

DW África: E, como membro da sociedade civil, percebe que há essa capacidade de resposta?

JC: Existem organizações que, mesmo antigamente, sempre mantiveram esta postura. Há organizações com trabalhos extensivos de estudos, de pesquisas, de monitoria de políticas públicas, de monitoria do orçamento, há relatórios e dados que foram produzidos por organizações da sociedade civil que servem de base para um trabalho da sociedade civil mais reforçado. Há presença das organizações da sociedade civil ao nível de organismos regionais, internacionais, e foram produzidas recomendações. Mas também há um grupo enorme de organizações que é um bocadinho só de "fala barato", e o trabalho é como é que nós, organizações da sociedade civil, construímos consensos, juntamos vozes e forças à volta dos assuntos que são estruturantes. Portanto, é o momento das organizações reunirem-se e saberem como aproveitar, da melhor maneira possível, o espaço que agora lhes está a ser aberto.

Angola Obdachlose in Benguela
Família desalojada em Benguela. A sociedade civil angolana tem lutado pelos direitos de pessoas como estasFoto: DW/N. Sul d'Angola

DW África: As organizações da sociedade civil têm o mesmo vigor e visibilidade que tinham durante o Governo anterior?

JC: Acho que a visibilidade não ficou mais ou menos afetada por esse facto. As organizações que sempre se uniram, que sempre estiveram estruturadas e souberam trabalhar com rigor e seriedade, continuam, e são hoje consultadas pelo Governo para dar informações, para dar ajuda. Falo da minha própria organização, muitas vezes convidada a dar opiniões sobre assuntos pela Secretaria dos Assuntos Sociais da Presidência. Portanto, vemos um abrir-se de portas para as organizações que sempre se mostraram sérias no trabalho que estavam a realizar. Obviamente, no anterior contexto era muito fácil para algumas organizações e alguns defensores terem uma certa visibilidade, porque bastava um pequeno incidente para [uma organização] se tornar famosa, porque a media não falou ou porque foi proibida de fazer isto ou aquilo. Portanto, penso que os contextos fechados produzem, não diria falsos heróis, mas às vezes dão-nos a perceção de que somos heróis simplesmente porque conseguimos dizer alguma coisa, conseguimos contornar, por outros espaços, o poder instituído. Chegou a hora de mostramos que somos consistentes no nosso discurso e na nossa missão e chegou a hora de mostrarmos que temos propostas a fazer. Não estamos só para criticar e dizer o que não está bem, estamos também para indicar caminhos. Portanto, isso é um desafio que se coloca às organizações, e esse desafio tem de ser vencido em rede, em parceria e em troca de estratégias.

Symbolbild Tuberkulose
Vários hospitais angolanos têm falta de material básico para prestar serviçosFoto: Reuters/S. Eisenhammer

DW África: Face aos sinais de mudanças dados pelo Presidente João Lourenço, como membro da sociedade civil o sr. Candeiro daria o seu voto de confiança ao Presidente ou acha também que, até agora, João Lourenço está limitado aos discursos e ainda não mostrou ações concretas? 

JC: Acho que é bastante cedo para dizer que terá mostrado ou não alguma coisa. Penso que uma avaliação justa devia levar-nos a olhar para o que ele fez e para o que disse. De qualquer maneira, prefiro dar-lhe o benefício da dúvida, louvar a coragem que teve na tomada de algumas decisões. O desafio principal que João Lourenço tem pela frente é fazer com que, do carisma de um líder que se tem mostrado corajoso, passemos à institucionalização das práticas. Eu ainda o vejo como um homem a quem os seus ajudantes não seguem o suficiente. Mas também sei que há angolanas e angolanos que não vêm refletidas no seu dia a dia as mudanças que ele anunciou. Portanto, isso ainda não mudou, não temos mais medicamentos nos hospitais e nem temos mais qualidade nas escolas. Há ainda muito por provar na vida da maioria dos angolanos que celebraram e celebram a sua eleição. Mas para nós observadores, que temos a obrigação de não nos limitarmos à gestão do quotidiano, cabe também o rigor de reconhecer que há ali sinais positivos que são de encorajar.

Nádia Issufo
Nádia Issufo Jornalista da DW África